Pepe Mujica visitou o Papa Francisco após o conclave em 2013 | Foto: DR

Foi o primeiro presidente latino-americano a ser recebido em audiência por Francisco. E apesar de se declarar ateu, José “Pepe” Mujica reconhecia que tinha muito em comum com o Papa argentino. Eram quase da mesma idade e praticamente vizinhos, apaixonados pela América Latina e pelos pobres. Morreram com menos de um mês de diferença – o Papa na segunda-feira de Páscoa, e Pepe quando em Fátima se consagrava o pontificado de Leão XIV a Maria – e há quem diga que aquilo que tinham em comum não morreu com eles.

Nascido a 20 de maio de 1935, no bairro Paso de la Arena, em Montevidéu, “el Pepe” amava o Uruguai, mas tornou-se do mundo. De resto, a sua família paterna tinha raízes bascas, e a família materna havia imigrado de Itália e era de origem piemontesa (sim, tal como a de Francisco).

Estudou Direito – curso que não chegou a concluir – mas se lhe perguntassem pela sua profissão dizia que era agricultor, tal como tinha sido o seu pai, que faleceu quando ele tinha apenas cinco anos. No entanto, foi o seu papel como político que o levou a ser conhecido por toda a parte. E a conhecer o Papa Francisco também.

Símbolo da esquerda latino-americana, Mujica fez parte do Movimento de Libertação Nacional -Tupamaros, um grupo guerrilheiro de extrema esquerda inspirado na Revolução Cubana. Naquela época, início da década de 60, havia desemprego em massa no Uruguai. E ele e os companheiros, que sonhavam com “uma sociedade sem classes sociais”, roubavam bancos, sequestravam políticos e colocavam bombas. “Éramos ingénuos, mas nunca perdemos de vista o objetivo”, assegurou numa entrevista à DW. A ingenuidade e os objetivos pelos quais lutava fizeram com que, em 1972, fosse preso juntamente com grande parte dos membros do grupo. Após a instauração da ditadura civil-militar no ano seguinte, foi um dos “reféns” usados para ameaçar a organização e impedir que esta retomasse as atividades.

Ao todo, passou 14 anos preso, parte desse período numa solitária: sem livros, sem remédios, sem cama nem latrina, quase sem água e comida. Perdeu todos os dentes, ouvia vozes sinistras, aprendeu a escutar as formigas que passeavam no chão da sela. Mas recordava sempre o que esse tempo teve de positivo: conhecer-se a si próprio e colocar perguntas sobre de que modo seria possível mudar o mundo para melhor.

Com a queda do regime ditatorial, foi aprovada uma lei de amnistia sob a qual ele e outros presos políticos foram libertados. Pepe Mujica saiu da prisão, já com 50 anos, à procura de respostas.

 

“O presidente mais pobre do mundo”

Mujica foi então viver com aquela de quem nunca mais se separou, Lucía Topolansky (uma colega tupamara libertada na mesma época), para uma pequena quinta onde produziam tomates e crisântemos… e se dedicavam à atividade política.

Os Tupamaros evoluíram para o partido político de esquerda Movimento de Participação Popular (MPP) e, dez anos após a sua libertação, Mujica foi eleito membro do Congresso. O jornalista argentino Martin Caparròs conta no El País um episódio curioso sobre o seu primeiro dia no parlamento: “el Pepe” deslocou-se até ao edifício na sua velha Vespa, com a pintura já descascada, e estacionou junto à entrada. O porteiro, confundindo-o com um estafeta de entregas, disse-lhe que aqueles lugares estavam reservados aos deputados e perguntou, condescendente: “Vai ficar muito tempo?”. Mujica respondeu, com aquele sorriso travesso que o caracterizava: “Se não me expulsarem antes disso, cinco anos”.

Acabou por ficar mais do que isso. Depois de ter sido deputado, foi senador pela Frente Ampla e, entre 2005 e 2008, durante o primeiro governo de um socialista, ocupou o cargo de ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca. Mais tarde, em 2010, ele próprio foi eleito Presidente, com 52% dos votos.

Mas mesmo ocupando o mais alto cargo do Estado, Mujica permaneceu fiel a si mesmo e aos valores que defendia: nunca usava gravata, ia de sandálias para as reuniões, e quando em 2014 vestiu um fato para ir à Casa Branca, o mais provável é que não fosse dele, de tão curto que estava. Não admira que o seu anfitrião, Barack Obama, o tenha descrito como uma pessoa de “credibilidade extraordinária”.

Ficou conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”: doava 90% do seu salário para projetos sociais e, em vez de se mudar para a residência oficial, decidiu permanecer na sua pequena e humilde quinta com a companheira Lucía e com Manuela, a sua cadela de três patas.

Também recusou um carro topo de gama e ia para todo o lado com o seu Volkswagen azul claro de 1987. Era ele próprio que o conduzia para eventos oficiais e visitas informais e o estacionava no meio de receções diplomáticas onde a maioria fazia questão de ostentar riqueza.

Oferecido por um grupo de amigos próximos que arrecadaram fundos para adquiri-lo, o pequeno “carocha” tornou-se, assim, uma extensão do discurso político e filosófico de Mujica, que se opunha ao consumismo, aos privilégios do poder e às formas tradicionais de luxo.

Em 2014, durante uma cimeira na Bolívia, um xeque árabe ficou impressionado com o veículo e ofereceu-lhe um milhão de dólares por ele, mas Mujica não hesitou em recusar. “Alguns amigos deram-me este carro. Não posso vendê-lo. Teria vergonha”, disse Pepe, como recorda o jornal Clarin.

Admirador da Igreja Católica e de Francisco

Sob a sua liderança, o desemprego, a pobreza e a mortalidade infantil diminuíram no Uruguai. Legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e o aborto, alegando que “o mundo tem que aceitar certas coisas que são inalteráveis”, e o seu projeto mais controverso foi, provavelmente, a legalização da cannabis para fins recreativos. Mujica acreditava que tal medida deveria ser testada num país pequeno como o Uruguai. O teste continua até hoje e outros países, como o Canadá, bem como muitos estados dos EUA, seguiram o exemplo.

Não é, assim, de estranhar que muitos tenham ficado surpreendidos quando, em 2013, o viram fazer 12 mil quilómetros para ir ter com o Papa ao Vaticano, levando-lhe de presente o livro de um amigo em comum, o historiador e teólogo uruguaio Alberto Methol Ferré, falecido em novembro de 2009. “Ele abriu-nos a mente”, comentou Mujica quando entregou o livro a Francisco. “Ele ajudou-nos a pensar”, respondeu-lhe o Papa, com um sorriso cúmplice.

Seguiu-se uma hora de conversa (foi um dos encontros privados mais longos que Francisco manteve com um líder político), após a qual Mujica disse a um jornalista: foi como falar “com um amigo do bairro”. O Papa, por seu lado, fez saber através do seu porta-voz: trata-se de “um homem sábio”.

Na sua sabedoria, Pepe Mujica viria a reconhecer, numa entrevista dada ao Vatican Insider quatro anos mais tarde, ser “um admirador político da Igreja católica, apostólica e romana”. “Eu sei que se pode censurar a Igreja por muitas coisas, mas é muito mais o que devemos reconhecer-lhe. Porque, em última análise, o que teria para lhe cobrar são os defeitos dos homens, não da Igreja, não da instituição”, afirmou então.

Recordando que teve muitos amigos entre os frades conventuais franciscanos e que “em todos os acontecimentos emancipatórios americanos houve sempre a pluma de um sacerdote por trás do pensamento dos libertadores”, o líder político uruguaio disse estar “convencido de que o mais fundamental do homem é a fé”. E acrescentou: “Respeito a atitude religiosa do homem em geral, é verdade, mas eu sou do Ocidente, nasci na América Latina. A imagem de Deus que aqui semearam tem um rosto cristão, apostólico, romano. E isso penetrou profundamente em milhões e milhões de latino-americanos. Quem sou eu com as minhas dúvidas diante do universo para questionar o valor que este tem! Tenho que respeitá-lo”.

Um respeito que cresceu ao conhecer o Papa Francisco e acompanhar de perto o seu pontificado. “Ele é um formidável lutador social. Pela igualdade, pela misericórdia, pelo direito à compaixão, por tentar fazer entender que a fraternidade é vital entre os homens, por dar-se conta de que vencer na vida não é acumular riqueza”, afirmou na mesma entrevista. “Vejo o Papa como um formidável lutador que usa todo o seu peso institucional para tocar a nossa consciência, para convocar a sociedade, para mostrar que um mundo um pouco melhor é possível. Mas também depende de nós. Por isso, considero-me um amigo ideológico do Papa, e acompanhá-lo-ei em tudo o que puder”, anunciou.

Uma luta comum contra o consumismo

Quando questionado sobre se poderia vir a tornar-se católico, Mujica respondeu: “Eu sou um acólito do Papa”. E parecia até ter começado a duvidar do próprio ateísmo: “As minhas dúvidas com Deus são filosóficas. Ou, talvez, eu acredite em Deus. Talvez, não sei… Ou, talvez, como estou a aproximar-me  da morte, eu precise dele…”.

Não admira, assim, que em 2014 o ateu Mujica tenha dedicado um episódio do programa semanal que mantinha na Rádio Uruguai à Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, escrita por Francisco no final de 2013. falando durante meia hora sobre “a alegria do Evangelho”.

E também não é de espantar que Mujica tenha regressado ao Vaticano, em novembro de 2016, como convidado do Encontro Mundial de Movimentos Populares, o qual aconteceu com o apoio do Pontifício Conselho Justiça e Paz com o objetivo de “promover o protagonismo dos trabalhadores de todo o mundo que atuam na luta pela terra, casa e trabalho”.

Certo é que a sua mensagem e a de Francisco eram coincidentes em muitas coisas, particularmente quando criticavam a cultura do consumismo. “Temos que consumir. Consumir e comprar, sempre coisas novas e diferentes, como se esse fosse o ápice da felicidade humana, e não nos damos conta de que quando compramos coisas estamos pagando com o tempo da nossa vida; em certo sentido, junto com o dinheiro que é preciso ter para comprar, gastamos a nós mesmos. Depois damo-nos conta de que não nos resta tempo para os afetos, para a fraternidade, para quem está doente, para as coisas que não dão lucro. Mas que dão o gosto de viver”, alertava o ex-Presidente uruguaio.

“Essa é a armadilha do nosso tempo. E quase sem nos darmos conta tornamo-mos incapazes de nos compadecer com o grito dos outros; já não choramos diante do drama de outra pessoa ou não nos interessa ajudá-la suportá-lo, como se isso fosse uma responsabilidade de outra pessoa que não tem nada a ver conosco. Perdemos a calma e ficamos nervosos se o mercado oferece algo que ainda não podemos comprar, enquanto todas as vidas mutiladas pela falta de possibilidades parecem um mero espetáculo diante do qual não nos alteramos.” Palavras que também são de Mujica, mas que bem poderiam ser de Francisco. Qualquer semelhança entre os discursos de ambos seria mera coincidência?

Quebrou o silêncio pelo Papa

Após o fim de sua presidência em 2015, Mujica ainda mediou as negociações de paz entre o governo colombiano e os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), e continuou sempre a contribuir para o debate político.

A 9 de janeiro deste ano, durante uma entrevista ao jornal uruguaio Búsquedaanunciou que, depois de 32 sessões de radioterapia, o cancro do esófago que lhe havia sido diagnosticado meses antes tinha atingido o fígado e ele estava, por essa razão, a morrer. Conversou com o jornalista na quinta onde tanto gostava de viver e onde deu entrevistas aos mais prestigiados média de todo o mundo. Serenamente, contou-lhe que havia parado o seu tratamento e que aquela seria a última conversa com um jornalista. “O guerreiro tem direito ao seu descanso”, justificou.

Quebrou o silêncio no dia da morte do Papa que tanto amava. “Francisco não passou pela vida como um homem neutro, mas como um homem religioso comprometido com o seu modo de pensar e sentir. Eu honro e nunca esqueço este papa, um amigo que, acima de tudo, tinha uma causa humana formidável pela qual viver”, escreveu naquela que viria a ser a sua última publicação nas redes sociais.

E ainda deu uma curta entrevista pelo telefone, que pode ser escutada no vídeo abaixo, onde recordou o telefonema de Francisco em outubro do ano passado, para saber do seu estado de saúde, e afirmou que o Papa “precisava de mais tempo e mais companhia” para levar adiante a reforma que iniciou na Igreja.

Talvez Leão XIV assuma agora essa missão, mas sobre isso Mujica não chegou a  pronunciar-se. Enquanto os restos mortais de Francisco já repousam no túmulo simples que sonhou, à sombra de Santa Maria Maior, o corpo de “Pepe” prepara-se para ir agora descansar junto de Manuela, a fiel cadela, no jardim da sua quinta.

“Esse José, amigo do papa Francisco, não era religioso, mas a ele cabem muito bem as palavras do apóstolo Paulo aos coríntios (2 Co 6,10): ‘tidos como tristes, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo e possuindo tudo!’”, considera o deputado federal brasileiro Chico Alencar. E conclui: pessoas assim, “que marcam a sua passagem na vida com dignidade, fraternidade e grandeza”, não importa se são crentes, agnósticas ou ateias: “assim se eternizam”.

Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.