“Há obviamente um simbolismo em ser o país mais populoso, mas há também a realidade. Quando mais de metade da população de um país tem menos de 30 anos, dispõe de um recurso valioso que não pode ser subestimado. Isto é particularmente verdade quando comparado com a situação global. Com efeito, a economia internacional, a procura e a demografia já não coincidem. Isto criou um mercado de trabalho global que confere uma crescente importância à mobilidade. O facto de estarmos também a transitar para uma economia do conhecimento e para uma era de inteligência artificial aumenta a importância dos recursos humanos. O desafio que a Índia enfrenta a nível interno é o de qualificar e educar os seus talentos para que possam dar o seu melhor contributo. Mas, em suma, a demografia será um fator crucial na economia internacional e, por conseguinte, também na política mundial”, diz Subrahmanyam Jaishankar, ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, sobre o facto de este ano o país ter ultrapassado a China em população, tendo agora mais de 1400 milhões de habitantes.

O ministro indiano, que visitou Portugal no início de novembro, fala também da importância da democracia, o sistema de governo que se mantém desde o fim da colonização britânica: “A democracia não foi apenas uma invenção em 1947, quando obtivemos a independência. Está profundamente enraizada na nossa cultura e no nosso ‘ethos’. Somos fundamentalmente uma sociedade pluralista e diversificada e valorizamos de facto essas características. Esta particularidade distingue-nos, não só da Ásia Oriental, mas também da Europa. Nunca impusemos a uniformidade como um pré-requisito para a construção de uma nação. Quer seja na fé, na sociologia, na política ou na cultura, a coexistência e a harmonização fazem parte do nosso ADN. Este facto tem naturalmente uma dinâmica própria, que não é fácil de compreender por sociedades com uma história diferente. A nossa capacidade de lidar com diferentes facetas da identidade é também muito mais forte. Isto faz com que os indianos estejam muito mais aptos a navegar num mundo globalizado. Para além disso, numa era de tecnologia, a nossa inclinação natural é democratizar a sua aplicação e utilização. Consequentemente, não vemos qualquer contradição em fazer avançar simultaneamente a tradição e a modernidade. A força fundamental da Índia reside no seu pluralismo e isso será mais importante à medida que navegamos num mundo interdependente”.

No campo das relações internacionais, a Índia é um caso muito especial, pois soma a parceria com a China no âmbito dos BRICS, a aliança tradicional com a Rússia e a nova relação com os Estados Unidas das América (EUA) prometida pelo primeiro-ministro Narendra Modi. “As duas grandes contradições do nosso tempo são a polarização Este-Oeste, atualmente centrada no conflito na Ucrânia, e a divisão Norte-Sul, acentuada pelo impacto da covid-19. Durante a sua presidência do G20, a Índia demonstrou capacidade para fazer de ponte entre ambas e ajudar a criar um terreno comum para uma agenda global. Isto deveu-se ao facto de sermos uma entidade política independente que pensou em termos de interesse nacional e de bem global e não de política coletivista. De qualquer modo, o mundo também está a caminhar para um maior reequilíbrio e multipolaridade. É necessário trabalhar com muitos parceiros em diferentes agendas. Podemos chamar-lhe multivetorial, independente ou, nalguns casos, até multi-alinhamento. A realidade é a capacidade de estabelecer parcerias com diferentes intervenientes em questões concretas, por vezes numa arena específica. Isto é visível no avanço do Quad no Indo-Pacífico, na expansão dos BRICS, ou mesmo em iniciativas no Médio Oriente. Da mesma forma, recorde-se que a Índia é um forte defensor do Sul Global. E temos vindo a tomar iniciativas como a Aliança Solar Internacional ou a Coligação para as Infraestruturas Resistentes a Catástrofes. O nosso historial em eleições para organizações internacionais é uma indicação da credibilidade e do apoio que temos no mundo. Por vezes defendemos o que é correto, ainda que isso vá contra a narrativa dominante, o que só veio reforçar a nossa posição junto dos países que sentem que articulámos aquilo em que também eles acreditam realmente”, sublinha o diplomata de carreira (foi embaixador na República Checa, nos EUA e na China) que desde 2019 detém a pasta da política externa.

Em Lisboa, Jaishankar esteve reunido com as autoridades portuguesas e falou de vários temas, desde a imigração à criação de uma ligação aérea direta. Também se encontrou com a  comunidade indiana e luso-indiana. E falou de parcerias: “A União Europeia (UE) é um parceiro cada vez mais importante para a Índia. Uma das facetas do relacionamento é o aspeto económico e de desenvolvimento, em que a UE é a fonte de tecnologia, capital e melhores práticas. No entanto, é igualmente digno de nota o facto de sermos economias de mercado, Estados democráticos e sociedades pluralistas. Existe um compromisso comum no sentido de construir e reforçar uma ordem baseada em regras. Especialmente no rescaldo da pandemia da covid-19, é necessário que cooperemos na criação de cadeias de abastecimento mais resistentes e fiáveis. Do mesmo modo, no domínio digital, ambos atribuímos grande importância à confiança e à transparência. É do nosso interesse comum que a economia internacional não se torne excessivamente vulnerável devido a uma concentração excessiva.

O comércio entre a Índia e a UE ultrapassa os 150 mil milhões de euros. As recentes políticas indianas que visam facilitar a atividade comercial suscitaram uma forte reação por parte das empresas europeias. Estamos atualmente a negociar um acordo de comércio livre entre a Índia e a UE. Obviamente, trata-se de um exercício complicado e levará algum tempo a concluir. A Cimeira do Porto em 2021 foi um marco no que a isto diz respeito. E estamos gratos pelo papel de Portugal enquanto catalisador deste processo. Outro aspeto digno de nota é o interesse crescente que a UE e os seus membros individuais têm demonstrado pelo Indo-Pacífico”.

O facto de o país mais populoso do mundo não estar entre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU também merece o comentário de  Jaishankar: “Consideramos que a reforma das Nações Unidas é absolutamente essencial para que a ordem mundial se torne contemporânea. A atual disposição tem quase oito décadas e ultrapassou claramente o seu objetivo. Grandes partes do mundo e o país mais populoso não estão adequadamente representados no seu processo de decisão. Este facto tem prejudicado tanto a eficácia como a credibilidade da ONU. Temos assistido nos últimos tempos a impasses e bloqueios numa altura em que o mundo quer soluções. Quando estávamos a atravessar a maior crise deste século no combate à pandemia, a ONU foi inicialmente uma espetadora. O mundo está a tornar-se mais complicado e desafiante. Há um défice visível de bens globais. Este só pode ser resolvido se aqueles que mais têm para contribuir puderem de facto fazê-lo. Afinal de contas, até o G7 cedeu o seu lugar ao G20. Como é que o P5 pode continuar inalterado? Se avaliarmos objetivamente os sentimentos dos quase 200 membros da ONU, estes são fortemente a favor da mudança. Alguns países estão a resistir a essa mudança, por ganhos mesquinhos e interesses egoístas. Não podem lutar contra a mudança e resistir ao progresso. A reforma da ONU há de acontecer e é uma questão de tempo”.

O ministro é irmão do famoso historiador Sanjay Subrahmanyan, autor de uma biografia de Vasco da Gama. Sobre a relação mútua de 500 anos, sobretudo em Goa, diz: “A história é uma herança. O que fazemos dela depende de nós. Como um país que acredita que uma globalização justa, democrática e responsável oferece oportunidades, a Índia gostaria naturalmente de reforçar as suas ligações internacionais. Os laços do passado podem ser úteis nesse sentido. Por isso aderimos à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e desenvolvemos os nossos laços com o mundo lusófono”.

Outro tema importante abordado é as migrações. “A mobilidade e a migração são hoje elementos intrínsecos da nossa existência globalizada e interdependente. O desafio para a diplomacia é fazer com que isto funcione em benefício mútuo. Apoiamos fortemente a mobilidade legal, uma vez que é transparente e proporciona a proteção necessária. Portugal é um dos primeiros países da UE a aperceber-se da sua importância. Nos últimos anos, celebrámos acordos com vários outros países da UE. A criação de um mercado de trabalho global justo e ordenado é do maior interesse da comunidade internacional”.

Jaishankar falou ainda da tensão com o Paquistão, nascido também em 1947 e hoje potência nuclear como a Índia: “É verdade que as relações entre a Índia e o Paquistão têm os seus desafios. Esses desafios resultam essencialmente do terrorismo transfronteiriço dirigido contra a Índia. Nenhum país sofreu mais com o terrorismo do que nós. Naturalmente, esperamos que, a um dado momento, o bom senso prevaleça. No que se refere a Jammu e Caxemira, a questão pendente é a desocupação de territórios indianos ilegalmente ocupados pelo Paquistão e pela China. A narrativa do conflito que sugeriu é parcialmente impulsionada pelo exterior e em parte promovida por interesses instalados. A narrativa que procuramos praticar e promover é uma narrativa de desenvolvimento sem discriminação, em que ninguém é deixado para trás. Na nossa linguagem, é conhecida como ‘Sabka Saath, Sabka Vikas’”.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN