O mosteiro de Alaverdi, erguido no século XI, foi durante cerca de mil anos o mais alto edifício religioso da Geórgia, até à construção da catedral da Santíssima Trindade (ou Sameba) em Tiblissi, concluída em 2004, já depois da reconquista da independência nacional, consequência da desagregação da União Soviética. Mas não é só pelos 55 metros do seu ponto mais elevado (agora ultrapassado e muito pelos 105,5 metros da Sameba) que o mosteiro é importante como símbolo da identidade de um dos mais antigos países cristãos do mundo. Alaverdi, cuja catedral tem uma porta encimada por um fresco a mostrar São Jorge a matar o dragão, sofreu, como tem sido regra na história georgiana, ataques de sucessivos invasores. Mas foi sempre capaz de reconquistar a sua liberdade e vocação original, como aconteceu no início do século XVII, quando Shah Abbas, o monarca persa, muçulmano, teve de abandonar o mosteiro (e a Geórgia), depois de o ter convertido em cavalariça para serviço do palácio que tinha construído ali, adaptando a catedral às funções de mesquita.

A antiguidade da Geórgia como país na transição da Europa para a Ásia é difícil de datar, mas vem certamente de vários séculos antes de Cristo (a.C.). Os gregos e persas antigos tiveram de lidar com um povo que ainda hoje se denomina a si próprio de kartvelianos. Dividido em vários reinos, teve uma primeira unificação no século III a.C., através de Parnavaz I, rei da Ibéria, nome de origem estrangeira que se impôs, tal como Geórgia até hoje, e este último tem várias explicações, desde derivar da palavra grega geo, para terra dos lavradores, ou da palavra persa gorgan, que significaria terra dos lobos. Não fosse a Geórgia ser tão antiga, mais do que o cristianismo, e a tese de que o nome se devia ao forte culto de São Jorge até teria um certo apelo.

O país que na sua própria língua se chama Sakartvelo, apesar de ter menos de quatro milhões de habitantes e um território um pouco menor do que Portugal (69 mil quilómetros quadrados), possui uma identidade nacional alicerçada num idioma próprio, com alfabeto próprio desde a era de Parnavaz I, numa presença efetiva nas montanhas da Transcaucásia há milhares de anos, e também na fé cristã, oficializada em 337 pelo rei Mirian III. “Somos o terceiro mais antigo país cristão. Antes só a Arménia e a Etiópia”, explica-me Giga Martashvili, que trabalha como guia para visitantes estrangeiros e que é quem me levou até Alaverdi, mosteiro próximo da cidade com o mesmo nome, situada no nordeste do país, não longe das fronteiras com a Rússia e o Azerbeijão.

A adoção do cristianismo pela população foi gradual, pois havia uma antiga tradição pagã que inclui elementos do zoroastrismo oriundo da Pérsia. Existe perto de Gori (cidade hoje mais famosa por ali ter nascido Estaline, líder da União Soviética), um complexo de grutas escavado na montanha que serviu primeiro de santuário pagão e depois de santuário cristão. Abandonado durante a Idade Média, Uplistsikhe mantém, contudo, uma igreja mesmo no cume, como que a relembrar que o cristianismo, na versão ortodoxa, é a religião oficial.

Uma leitura de um livro sobre a história da Geórgia – e destaco em inglês ‘Edge of Empires: A History of Georgia’, de Donald Rayfield – mostra bem como o pequeno país (cujo auge foi nos séculos XII e XIII com o rei David, o Construtor e depois a rainha Tamar) tem resistido às ofensivas de sucessivos impérios, mais ou menos hostis, desde o persa (antes e depois da islamização do que é hoje o Irão), o romano, o bizantino, o árabe, o mongol, o tamerlânico, o otomano ou o russo.

Um dos segredos dessa resistência é o terreno montanhoso, com o pico mais alto, o Shkhara, a ultrapassar os cinco mil metros, mais dois picos acima dos cinco mil e vários com altitudes bem acima dos quatro mil, oferecendo refúgio às populações perante os invasores. Em Tiblissi a fortaleza de Naricala, numa colina que domina a capital georgiana, é um testemunho dessas épocas de cerco a castelos e de povoações fortificadas preparadas para resistir a quase tudo. Outro segredo da sobrevivência do país tem que ver com a qualidade como guerreiros dos georgianos desde tempos imemoriais, ao ponto de vários inimigos mais poderosos aceitarem acordos de paz a troco de fornecimento de soldados locais, mas também de generais, para os seus exércitos.

Houve momentos de grande mortandade, tanto culpa das batalhas como da destruição ou abandono dos campos por causa da guerra, mas talvez a maior ameaça à Geórgia tenha acontecido no final do século XIV, início do século XV, com sucessivas invasões por Tamerlão, descendente das tribos mongóis de Gengis Khan mas seguidor já do Islão.

Há um momento em que Tamerlão, fanatizado pela religião, arrasa mosteiros e igrejas georgianos, além de destruir aldeias, cidades e até videiras (por causa do vinho), num esforço para acabar com o carácter cristão do país, que remontava mais de mil anos atrás, quando uma monja oriunda da Capadócia (na atual Turquia, então território romano) chegou à Geórgia para a evangelizar. Essa monja, Nino ou Santa Nino, conseguiu primeiro converter a rainha, mas o rei Mirian III, pagão convicto e irritado com a aceitação da nova fé até pela mulher, só aceitou o cristianismo quando, diz a lenda, durante uma caçada ficou de repente cego, envolto numa escuridão, e só voltou a ver, a regressar à luz, depois de rezar ao Deus de Santa Nino.

Meio século depois de se terem visto livres da ameaça de Tamerlão, que morreu em 1406 quando se preparava para tentar conquistar a China a partir do seu bastião na Ásia Central, Samarcanda, os georgianos viram-se novamente numa situação terrível em termos de sobrevivência como povo e como Estado: a conquista em 1453 de Constantinopla pelos turcos, com o Império Bizantino a desaparecer e ser substituído pelo Otomano como grande potência nos Balcãs e na Anatólia. De repente, a Geórgia perdia um aliado pontual, com o qual estava ligada pela religião comum, e ficava cercada de vizinhos muçulmanos, pois a Rússia lutava contra os tártaros para se expandir para sul e ainda não chegava ao Cáucaso.

Divididos entre vários reis e pretendentes a reis, os georgianos tiveram uns séculos XVI e XVII terríveis, com o seu território a servir de campo de batalha entre os otomanos sunitas e a Pérsia xiita, e a política de alianças flexíveis a não ser muito bem sucedida. Isto ao ponto de no início do século XVII, Shah Abbas planear, tal como antes Tamerlão, o fim dos cristãos, fazendo guerras terríveis aos georgianos, alguns deles convertidos por interesse ou medo ao Islão e seus aliados.

Um episódio dessa fúria de Shah Abbas contra a Geórgia, por causa da resistência do rei Teimuraz I, tem relação com Portugal. O monarca persa manda castrar os dois filhos do rei georgiano (que morrem) e exige à mãe deste, a rainha Ketevan, que se converta ao Islão. A recusa desta leva à tortura e morte em Isfaão, no atual Irão. Monges agostinhos portugueses assistiram ao martírio e resgataram em segredo partes do corpo. Algumas relíquias foram levadas para Alaverdi, outras para Goa, então parte do império português. A memória desse impressionante martírio de uma rainha georgiana, que foi santificada pela igreja ortodoxa, explica a existência de um painel de azulejos em Lisboa, no Convento da Graça.

No final do século XVIII, a Geórgia submeteu-se à proteção do czar, o mais poderoso monarca cristão ortodoxo. Ficou assim protegida dos ataques muçulmanos em grande medida, tanto otomanos como persas, mas perdeu a independência, que recuperou brevemente durante a convulsão gerada pela Revolução Comunista de 1917 na Rússia e depois em 1991.

A relação com a Rússia é ainda complexa, pois a Geórgia até deu grandes generais aos czares e viu Estaline liderar a União Soviética durante três décadas. Em 2008, sofreu mesmo uma invasão russa, que veio em apoio de duas regiões separatistas, a Abkázia e a Ossétia do Sul. Num país que tem cerca de dez por cento de muçulmanos, alguns de língua georgiana (há uma mesquita na zona histórica de Tiblissi) outros de etnia e língua azeri, a igreja ortodoxa é muito influente ainda, ela que chegou a ser tentada pela ligação a Roma (pedindo ao longo da história várias vezes apoio militar, mas sem consequências dada a distância em relação aos países católicos) mas acabou por se fixar no campo ortodoxo, ligado a Moscovo, ainda que como igreja autocéfala, com um patriarca desde 1977, Elias II.

Num país que quer aderir à NATO e à União Europeia por vocação civilizacional, a igreja é acusada de resistir à ocidentalização, como alerta Régis Genté, jornalista francês que vive há 20 anos em Tiblissi: “A Geórgia começou há pelo menos 200 anos a sonhar em ser europeia, em ser membro da família europeia, como dizem às vezes. O tão famoso vinho georgiano, por exemplo, é feito desde o século XIX à maneira europeia, como se costuma dizer. Portanto, este é um processo longo e profundamente enraizado. Parte da sociedade está a resistir à ocidentalização, em torno da igreja nacional ortodoxa, por exemplo”.

O resultado das lutas de séculos entre este povo cristão e os inimigos muçulmanos foi, curiosamente, um país de grande tolerância religiosa, com minorias também de judeus, cristãos arménios e de católicos. Estes últimos, apesar de serem menos de um por cento da população, viram já dois Papas visitar o país: João Paulo II em 1999 e Francisco em 2016, mas foram viagens papais rodeadas por um ambiente marcado pelas velhas rivalidade entre o Vaticano e a igreja ortodoxa, que se refletem hoje nas próprias opções geopolíticas da Geórgia.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN