A previsão das Nações Unidas é conhecida desde meados do ano passado e aponta 2023 como o ano em que a China perderá o estatuto de país mais populoso do mundo. O seu substituto será a Índia, o outro gigante asiático. No momento, ambos os países estão praticamente empatados em número de habitantes, com os 1430 milhões de chineses a ser igualado pelos 1430 milhões de indianos.

Para se perceber o significado histórico desta ultrapassagem é preciso ter em conta que a China desde tempos imemoriais é o país mais populoso. No início do século XX, os chineses eram 373 milhões, enquanto os indianos se ficavam pelos 287 milhões. Em 1950, um ano depois da proclamação da República Popular da China e três depois da independência da Índia, o fosso aumentara, com os chineses a serem já 555 milhões e os indianos 356 milhões. O previsível seria que esse fosso alargasse ainda mais, pois com o fim da colonização britânica a Índia histórica perdera os territórios que são hoje o Paquistão e o Bangladesh, quinto e oitavo países mais populosos, respetivamente.

Na viragem do milénio, contudo, descobriu-se que o fosso não só não alargava, como era previsível que começasse a atenuar. Para os 1243 milhões de habitantes da China no ano 2000, a Índia exibia já 1040. Tudo por causa de políticas demográficas muito diferentes, explicáveis em boa parte pela diferença de sistemas políticos.

É tentador comparar a China e a Índia tendo como ponto de partida as datas-chave de 1949, fundação do regime comunista por Mao Tsé-tung, e 1947, proclamação da independência por Jawaharlal Nehru. Um gigante asiático escolheu um sistema autoritário de governo, o outro a democracia. Ora, essa escolha refletiu-se de várias formas, inclusive na questão do controlo do crescimento da população. Assim, entre 1980 e 2015, Pequim impôs a política de filho único, em grande medida respeitada pois as autoridades sancionaram quem não a respeitava; já a Índia foi fracassando na aplicação de todas as medidas mais radicais e as esterilizações forçadas de meados da década de 1970 causaram tal revolta na opinião pública que nas eleições de 1977 o Partido do Congresso, liderado por Indira Gandhi, a filha de Nehru, perdeu pela primeira vez desde a independência. A partir daí, sucessivos governos indianos foram cautelosos na política de natalidade, com a redução do crescimento a vir muito por opção das famílias.

Sobre as opções demográficas da China e a próxima ultrapassagem pela Índia em termos de população é interessante ler o que pensa a professora Wang Suoying, nascida em Xangai mas há três décadas a viver em Portugal: “Quanto mais gente melhor? Não acho. Em 1957, Mao Tsé-tung disse: ‘A China tem muita gente, o que é bom mas também é mau. A vantagem da China é ter muita gente e a desvantagem da China é também ter muita gente.’ Entendemos que uma grande população representa, por um lado, uma poderosa força produtiva e por outro, uma grande procura de comida, vestuário, alojamento, transporte, emprego, educação, saúde, segurança…, pelo que a reprodução do ser humano tende a acompanhar a produção de artigos para o seu consumo. Após 1949, na China houve períodos de explosão demográfica e de um filho para um casal, funcionando agora dois ou três filhos para um casal, tal como Mao disse: ‘Em suma, o ser humano deve controlar-se, podendo às vezes crescer um pouco, ou fazer uma pausa, ou diminuir um pouco, a avançar em ondas e realizar o planeamento familiar’. Os chineses orgulham-se por serem o país mais populoso do mundo, mas ainda mais pela transformação atual dum país populoso em potência económica, podendo dar maior contribuição ao mundo. Na altura, Mao disse: ‘Boa produção, boa vida, bom cuidado com as crianças, este é o nosso slogan’. Em 2021, na China a esperança média de vida aumentou para 78,2 anos (84,11 anos na minha terra Xangai); os principais indicadores de saúde estão na vanguarda dos países de renda média e alta; a taxa de mortalidade neonatal foi de cinco por mil (2,3 por mil em Xangai)”.

Vejamos agora a leitura da política demográfica indiana e as consequências de o país passar a ser o mais populoso por Shiv Kumar Singh, nascido no Uttar Pradesh (maior estado da Índia) e professor na Universidade de Lisboa: “A população indiana (prevê-se que ultrapasse 1400 milhões em 2023, conforme as Nações Unidas) poderá ser uma grande vantagem para a República da Índia, porque entre 2020-50 a idade média dos trabalhadores indianos será de 30 anos, enquanto nos países desenvolvidos a tendência é para o lado do envelhecimento. Conforme previsão da Confederação da Indústria Indiana, em 2023 a população trabalhadora indiana será de 1000 milhões (quase 24,3 por cento da população trabalhadora global) e este número não é apenas para trabalhar e servir para a indústria global, mas também  seria uma forte classe média para o consumo interno. Se a Índia conseguir arranjar um emprego a cada pessoa que já se encontra na idade de trabalhar até 2030, então o PIB indiano chegará a nove biliões de dólares (ultrapassou três biliões em 2021, conforme o Banco Mundial) e poderá chegar a 40 biliões até 2047, mas isto exigirá um investimento constante na formação e na melhoria não só no ensino superior, mas também na pesquisa e desenvolvimento, se não este número poderá ser catastrófico também”.

A conclusão é que existem vantagens e riscos tanto no controlo populacional como também na sua ausência. A China, obrigando os casais a ter só um filho, conseguiu que o grande ritmo de crescimento económico pós-reformas de Deng Xiaoping não fosse absorvido pelo aumento da população. E a certa altura, a sua população ativa era tremenda, dadas as pequenas percentagens tanto de idosos como de crianças. O resultado foi a China ter chegado a segunda maior economia mundial, com 15 biliões de PIB anual, só atrás dos Estados Unidos da América. Mas agora depara-se com uma população envelhecida e com a falta de vontade dos casais de terem famílias grandes (sendo que muita gente não tem irmãos, tios ou sobrinhos), o que representa um perigo para a competitividade chinesa, cuja economia, que cresceu muitos anos dez por cento, só cresce agora quatro a cinco por cento, dando dores de cabeça ao presidente Xi Jinping.

No caso da Índia, cujo crescimento económico tem sido engolido pelo crescimento populacional, a abundância percentual de jovens na população poderá tornar-se uma grande vantagem, pois tanto a China como o Ocidente estão envelhecidos. Mas os jovens só serão produtivos se tiverem condições para estudar e um meio empresarial que lhes crie empregos. Esse será agora o desafio do governo de Narendra Modi.

Com o mundo já acima dos oito mil milhões de habitantes (desde 2022), a população somada da China e da Índia representa um terço do total. Hoje segunda e quinta maiores economias do mundo, os dois gigantes asiáticos terão um papel preponderante nas próximas décadas e isso trará, a par do aumento da riqueza, ambições também políticas. Sabe-se que a China quer substituir os Estados Unidos da América como superpotência e também que a Índia deseja ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Cada uma defenderá o seu sistema político como sendo o melhor, mas na realidade ambos correspondem a circunstâncias nacionais em certa época: depois de décadas de guerra civil e de invasão japonesa a seguir ao fim da Dinastia Qing, Mao instaurou um regime autoritário que unificou a China (com exceção da ilha de Taiwan) e garantiu uma estabilidade interna que, depois das reformas económicas lançadas por Deng trouxeram grande prosperidade; no caso da Índia, a independência após séculos de colonização foi conseguida por Nehru com a ajuda da resistência pacífica liderada pelo Mahatma Gandhi. Mesmo com a independência em paralelo do Paquistão de maioria muçulmana, a nova Índia era (é) um complexo mosaico etno-linguístico–religioso, o que obrigou a uma descentralização do poder e ao exercício democrático, única forma de evitar que as tensões resultassem em separatismos.

Hoje, os dois modelos aparecem como alternativos aos olhos de muitos países em desenvolvimento, com vantagem para a China, cujo rendimento médio por habitante é cinco vezes superior ao da Índia. Mas se os indianos mostrarem no futuro que, pela via democrática, até na questão do planeamento familiar, se conseguem bons resultados, então podem passar a ser o modelo mais apreciado. A maior parte dos países em desenvolvimento assemelham-se mais ao mosaico indiano do que ao predomínio de uma única etnia como acontece na China com os han (mais de 90 por cento).

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN