Leão XIV no Vaticano, a 12 de maio de 2025 | Foto: Lusa

Um Papa com experiência missionária, depois de um Papa que apelou a uma Igreja em transformação missionária. Leão XIV, eleito no dia 8 de Maio, sucedeu ao Papa Francisco, que morreu dia 21 de Abril, depois de um período de mais de três meses de doença a que sucedeu um AVC. Na exortação ‘Evangelii gaudium’, publicada após move meses de pontificado, Francisco escrevia: “Espero que todas as comunidades se esforcem por actuar os meios necessários para avançar no caminho duma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento, não nos serve uma ‘simples administração’. Constituamo-nos em ‘estado permanente de missão’, em todas as regiões da terra.” (EG, 25). No fim do seu pontificado, Francisco legou à Igreja o documento conclusivo do Sínodo sobre a Sinodalidade, cujo lema era comunhão, participação, missão.

Os cardeais em conclave elegeram o primeiro Papa com experiência missionária “em terras de pobreza e miséria”, como diz o cardeal António Marto, bispo emérito de Leiria-Fátima. “Fez-me lembrar a minha infância, quando o meu pároco também se deslocava a cavalo de uma terra para outra”, recorda, referindo-se à fotografia em que o então bispo Prevost aparece montado a cavalo, deslocando-se na sua diocese. “Os testemunhos de quem o conhecia dizem que ele levava medicamentos e comida às zonas mais pobres e a lugares que foram atingidos por tempestades.” O facto de ter ido dos Estados Unidos da América (EUA) para o Peru também é valorizado pelo cardeal português: “Conseguiu encarnar numa cultura diferente, onde toda a gente gostava dele e do seu bom humor.”

E o que se pode esperar de alguém que deixou o seu país de origem e foi para terreno onde o clero não abunda, a evangelização cristã é por vezes incipiente e a situação social é de pobreza e grandes dificuldades? A questão da pobreza e da justiça social, das migrações e do clima são temas já referidos pelo Papa nas suas primeiras intervenções. E na missa de início do pontificado, celebrada em 18 de Maio, Leão XIV resumiu: “No nosso tempo, ainda vemos demasiada discórdia, demasiadas feridas causadas pelo ódio, a violência, os preconceitos, o medo do diferente, por um paradigma económico que explora os recursos da terra e marginaliza os mais pobres.” E acrescentou: “Nós queremos ser, dentro desta massa, um pequeno fermento de unidade, comunhão e fraternidade.”

Para vários destes temas aponta também a conversa do Papa com os cardeais no sábado a seguir à eleição. “Temos um novo paradigma com a Inteligência Artificial, as mudanças no trabalho, na relação entre as pessoas, na espiritualidade e na relação com o próprio Deus”, diz o cardeal Marto, referindo alguns dos assuntos aflorados naquela ocasião.

“Propostas concretas”
Agora começa sem dúvida o mais difícil para este homem nascido em Chicago (EUA), em 14 de Setembro de 1955. O que faz dele o primeiro Papa nascido depois do fim da Segunda Guerra Mundial, mas também o primeiro originário dos EUA (e da metade norte das Américas), e o primeiro da Ordem de Santo Agostinho. Além disso, Prevost tem dupla nacionalidade (EUA e Peru, onde foi missionário e bispo durante mais de 20 anos), obtida em 2015. De língua inglesa, apenas Adriano IV (1154-1159) ocupara o lugar – curiosamente, era membro da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, de onde saiu a Ordem de Santo Agostinho, que Robert Prevost integrou.

No primeiro encontro com os cardeais, sábado, dia 10 de Maio (dois dias depois de ser eleito), o Papa Leão pediu “propostas concretas”, que agora será livre de aceitar ou não; mas uma das virtudes que se aponta a Robert Prevost é a de ser alguém que escuta. “Uma das coisas em que ele insistiu no encontro connosco foi o tema da sinodalidade, que é para continuar”, conta o bispo emérito de Leiria-Fátima. “É reflexivo, ouve, escuta, toma notas, não dá respostas logo…”

O cardeal António Marto, bispo emérito de Leiria-Fátima e um dos 133 eleitores no conclave, resume alguns dos pontos dessa conversa: o “pedido explícito de publicar, logo que pudesse, uma nova encíclica social” (que Leão XIV já deu a entender que pode ser sobre temas como a inteligência artificial e o trabalho); “atenção urgente à questão da paz”; continuar a reforma da Cúria Romana iniciada por Francisco; fazer uma reunião mensal de todos os responsáveis dos dicastérios, abordando temas concretos, numa espécie de conselho de ministros; promover uma reunião do colégio de cardeais uma vez por ano, com tempo para debate (Francisco fez apenas duas fora dos consistórios, uma sobre a família, outra sobre a reforma da Cúria); e continuar a reunir o conselho de cardeais, o até aqui designado C-9.

A comunicação do Vaticano, na perspectiva de uma nova gramática que é preciso encontrar para passar a mensagem cristã num mundo digital e de extremos contrastes, foi outro tema surgido nas reuniões. “A minha intervenção foi sobre o continente digital”, conta o cardeal António Marto, e esse tema apareceu já também na primeira homilia do novo Papa. Ao justificar a escolha do nome, disse: “É porque o Papa Leão XIII, com a histórica encíclica ‘Rerum novarum’, abordou a questão social no contexto da primeira grande revolução industrial; e, hoje, a Igreja oferece a todos a riqueza de sua doutrina social para responder a outra revolução industrial e aos desenvolvimentos da inteligência artificial.”

O seu horizonte, sugerido pelo nome escolhido, é o das grandes transformações sociais pelas quais o mundo está a passar. Tendo como referência o fundador do moderno pensamento social católico, que foi Papa no final do século XIX/início do XX, Leão terá querido afirmar que a direcção sugerida por Francisco, de atenção às grandes questões do mundo, é para continuar.

“Diplomacia multilateral”
Algumas das intervenções iniciais de Leão XIV indiciaram prioridades. A primeira será o tema da paz, já se percebeu. O até agora mais significativo discurso, do ponto de vista político, foi o que Leão XIV fez no encontro com o Corpo Diplomático, no dia 16 de Maio. Perante os 184 representantes de países e instituições que mantêm relações com a Santa Sé, o Papa Leão pediu que seja dado “um novo fôlego à diplomacia multilateral e às instituições internacionais que foram desejadas e concebidas, em primeiro lugar, para remediar as relações conflituosas que possam surgir no seio da comunidade global”; apelou ao desarmamento global, que traduza a “vontade de deixar de produzir instrumentos de destruição e de morte” por parte dos governos e responsáveis políticos; desejou a construção de “um mundo em que todos possam realizar a sua humanidade na verdade, na justiça e na paz”, as três palavras que apontou como “pilares da ação missionária da Igreja e do trabalho da diplomacia da Santa Sé”; referiu os povos “mais provados como os da Ucrânia e Terra Santa”; disse que a paz é mais do que uma “mera ausência de guerra e de conflito” ou “uma pausa de repouso entre uma disputa e outra”.

Também o diálogo entre religiões, tema que os últimos Papas vêm promovendo, através de posições e iniciativas concretas, é importante para promover a paz, disse Leão XIV. “Isto exige, evidentemente, o pleno respeito pela liberdade religiosa em todos os países, uma vez que a experiência religiosa é uma dimensão fundamental da pessoa humana, sem a qual é difícil, se não impossível, alcançar a purificação do coração necessária para construir relações de paz.”

O Papa Francisco, “sempre atento ao grito dos pobres, dos necessitados e dos marginalizados, bem como aos desafios que marcam o nosso tempo, desde a salvaguarda da criação até à inteligência artificial”, foi também evocado no discurso do seu sucessor. Esta insistência no tema da paz confirma as primeiras palavras na praça de São Pedro após a eleição, quando o Papa Leão falou de uma paz “desarmada e desarmante”; e no encontro com os jornalistas, segunda-feira, 12, quando pediu que se diga “‘não’ à guerra das palavras e das imagens”, rejeitando “o paradigma da guerra”.

O novo Papa “tem uma visão universal”, diz o cardeal Marto. Enquanto superior-geral da sua ordem, cargo que desempenhou entre 2001 e 2013, ele visitava as comunidades agostinianas, uma ordem mendicante à semelhança de franciscanos e dominicanos, surgida também no século XIII, e que está presente em 50 países. Por isso, a China e toda a Ásia, bem como a África, estarão seguramente nos horizontes do Papa Leão.
Nos primeiros discursos e intervenções, o Papa já assegurou que a sinodalidade é para continuar. Mas isso pode não significar grandes mudanças em questões como o papel das mulheres ou da moral sexual, por exemplo, dois temas que agitaram a Igreja nos últimos anos. Os próximos meses ajudarão a entender o rumo a seguir.

Um texto de António Marujo. O autor é jornalista do 7Margens e escreve segundo a anterior norma ortográfica; este texto retoma elementos de artigos publicados no 7Margens e no Público.