A invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022 reflete-se no relatório de 2023 do Índice de Paz Global (IPG) que analisa a situação no ano anterior. Mas nem sequer foi a guerra entre russos e ucranianos o conflito mais mortífero em 2022, e sim o conflito no Tigré, na Etiópia, que fez 100 mil mortos, esclarece Serge Stroobants, diretor para a Europa e Médio Oriente e África do Norte do Institute for Economics & Peace, que elabora o IPG. A guerra atual entre Israel e o Hamas, com a retaliação do Estado Judaico sobre a Faixa de Gaza depois do grupo palestiniano ter espalhado o terror, matando e sequestrando civis a 7 de outubro, “vai certamente refletir-se na avaliação de 2023”, ou seja no relatório a lançar em 2024, acrescenta o antigo coronel do exército belga. Como militar, Stroobants esteve colocado nos Balcãs e tem experiência em África.

Mas não se pense que o mundo estar menos seguro é um fenómeno recente. É sim uma tendência notada desde que em 2007 o principal relatório do IPG foi lançado pelo Institute for Economics & Peace, fundado dois anos antes pelo australiano Steve Killelea. Como explica Stroobants, “se abrirmos o IPG desde há 15 anos vemos que tivemos 13 anos em que baixou a pontuação em termos de paz a nível global e só em dois anos é que tivemos uma pequena subida. Portanto, ao longo dos últimos 15 anos tivemos uma baixa de mais de três por cento em termos do nível de paz globalmente. Quando olhamos para o ano passado, a que o recente relatório se refere, vemos uma baixa de 0,42 por cento que nos pode levar a pensar que não é muito, mas é muito significativo, principalmente quando agregado a um período de tempo semelhante”.

Curiosamente, essa baixa de 0,42 por cento não quer dizer que mais países ficaram menos pacíficos do que o número daqueles países que melhoraram no IPG. Até, pelo contrário, sublinha Stroobants: “Há mais países que ficaram mais pacíficos do que países que pioraram, mas a deterioração nestes foi muito mais rápida, numa percentagem muito maior comparada com os países que tentam tornar-se mais pacíficos. Portanto, há uma diferença cada vez maior entre os países mais e menos pacíficos do mundo. Quando olhamos para a evolução do ano passado conseguimos ver isso claramente. Claro que a Rússia e a Ucrânia foram dos países que tiveram duas das maiores descidas no IPG devido ao conflito que gerou cerca de 85 000 vítimas. No entanto, o conflito que deu origem a mais vítimas no ano passado foi o conflito na Etiópia, a guerra do Tigré, que teve como consequência mais de 100 000 vítimas. Porque é que isto não é do conhecimento geral? Porque os jornalistas não têm acesso ao terreno, nem existe um fluxo livre de informação que venha do Tigré. Portanto, podemos ver claramente que num período de 15 anos foram conflitos que geraram esta diminuição no índice de paz e, no ano passado, vimos um aumento de 96 por cento do número de vítimas. É algo que começou há quatro ou cinco anos e temos vindo a assistir a mais e mais conflitos e vítimas, mas no ano passado praticamente duplicámos os números. Agora é claramente exponencial e não é só na Ucrânia. Temos conflitos por todo o mundo que têm vindo a acontecer ao longo do tempo”.

À medida que se vai agravando o número de mortos, tanto israelitas como palestinianas, é evidente que o reacender do conflito israelo-palestiniano, que data pelo menos de 1948, vai ter impacto sobre o IPG futuro, mas Stroobants esclarece que o relatório deste ano já mostra a degradação da situação em 2022: “vimos que Israel sofreu uma das maiores descidas no nível de paz no ano passado e vimos também, ao analisar o impacto relativo do terrorismo, que Israel foi um dos dez países com maior subida no número de vítimas e de ataques”. Quando o próximo relatório sobre o IPG for publicado, estaremos a assinalar os 75 anos da declaração de independência de Israel, na época de imediato atacado pelos países árabes, que recusaram o plano de partilha da Palestina histórica apresentado pelas Nações Unidas, que previa um Estado Judaico e um Palestiniano. Hoje, a Autoridade Palestiniana reivindica um Estado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza e aceita a existência de Israel, mas o Hamas, que controla Gaza, prefere a lógica do confronto, com recurso ao terrorismo.

O antigo militar belga, que também ensina geopolítica em várias universidades, explica um pouco a complexa metodologia por trás do IPG: “no  tipo de investigação que fazemos no instituto olhamos para a paz como tal e para aquilo a que chamamos paz negativa e paz positiva. A paz negativa é, por definição, a ausência de violência pelo medo da mesma. Também aí houve uma diminuição de paz. Os domínios principais que analisamos são: o envolvimento num conflito, os níveis de segurança interna e os níveis de militarização. Depois, a paz positiva significa que olhamos para todos os elementos que temos de estabelecer para desenvolver a paz a favor da sociedade. Basicamente, quando olhamos para sociedades pacíficas sustentáveis vemos que o aumento da paz positiva traz todos os benefícios económicos, sociais e de bem-estar: atitude, estruturas e instituições instaladas. Quando olhamos para um país como Israel, por exemplo, com a diminuição dos níveis de paz vemos uma paz negativa, mas também um impacto na paz positiva, especialmente quando analisamos territórios como a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia vemos claramente que não estão presentes quase nenhuns dos pilares da paz positiva. Nesse sistema de abordagem à paz existem quase 80 pilares interligados e quase nenhum desses pilares tem estado presente ou tem sido posto em ação, portanto não podemos falar de um fluxo de informação livre, certamente também não podemos falar de boas relações com os vizinhos, desenvolvimento de capital humano, equidade na distribuição de recursos ou um ambiente empresarial saudável. Todos esses elementos básicos que criam sociedades pacíficas não estão presentes na região. O Médio Oriente e Norte de África continua a ser hoje a região menos pacífica do mundo”.

Pelo contrário, a Europa, mesmo com uma guerra no flanco oriental, é a região mais pacífica, embora esteja rodeada pela tal região menos pacífica do mundo – o Médio Oriente e o Norte de África. “Esta região está melhor do que estava há três, quatro ou cinco anos, mas continua no fim do nosso índice. Claro que temos também a Rússia e a Eurásia, o conflito na Ucrânia, no Nagorno-Karabakh entre o Azerbaijão e a Arménia, e depois a região subsaariana e o Sahel que é a região onde vemos o epicentro do terrorismo, e a concentração do impacto ecológico que também gera formas de violência. Também vemos aí uma concentração de problemas de governança com muitas sociedades muito instáveis”, acrescenta.

Portugal, apesar de já ter sido quarto no IPG e estar a descer posições há três anos, continua no top dez dos países mais pacíficos do mundo, sendo atualmente o sétimo. “Parabéns a Portugal por lá estar, quando olhamos para o top da paz mundial encontramos uma maioria de pequenas democracias liberais. Se analisarmos o top 20, vemos muitos países europeus ocidentais, pertencentes à União Europeia, que são democracias. Quando olhamos para Portugal temos de ver dois aspetos: decisões políticas que investiram de alguma forma na paz positiva e que criaram uma sociedade em que a paz positiva também gerou altos níveis de paz negativa. Assim, quando olhamos para os três domínios vemos que Portugal não está diretamente implicado num conflito interna ou externamente, talvez através da UE ou da NATO devido a ser membro dessas organizações; existe um alto nível de segurança interna em Portugal atualmente; o seu nível de militarização não o coloca na dianteira de uma indústria defensiva ou nos grandes investimentos da indústria militar. Sendo estes os critérios para medir a paz, normalmente as pequenas democracias que não estão envolvidas em debates geopolíticos ou possuem indústria defensiva têm muito boas pontuações. Portugal está lá em cima acompanhado pela Dinamarca, pela Áustria e outros países da UE comparáveis”.

Perante a discrepância de posições entre Portugal e Espanha, países semelhantes em tantos aspetos, Stroobants explica que o nosso vizinho “também é considerado um país altamente pacífico, é 32.º e continua no primeiro terço do IGP, mas é preciso perceber a complexidade do índice. Nós trabalhamos com 23 indicadores diferentes. Existem na Espanha alguns efeitos, como os separatismos, potencialmente desestabilizadores para um país que é bastante maior, que talvez esteja um pouco mais implicado na geopolítica regional, que tem uma indústria de defesa que é um pouco mais desenvolvida e um exército também maior, com uma percentagem do PIB mais alta investida nas Forças Armadas e um número mais alto de militares por 100 000 habitantes; além disso, também tem um pouco mais de instabilidade no que toca à segurança em várias regiões. É por isso, com a complexidade dos 23 indicadores, que certos países ficam em posições diferentes de outros que lhes são semelhantes”.

A chamada civilização ocidental, na célebre definição do académico americano Samuel Huntington, ou seja, a Europa Ocidental, a América do Norte e Oceânia, estão na liderança do índice de paz, afinal são 16 países no top 20, mas Stroobants diz “não ter a certeza de que se possa identificar uma explicação cultural para isso. Quando olhamos para os Estados Unidos da américa (EUA), por exemplo, vemos que eles estão quase no fundo do índice de paz global”. E acrescenta: “Quando olhamos para os EUA, por exemplo, e talvez para outros parceiros da NATO ou parceiros da maneira ocidental de olhar para o mundo e as relações internacionais, vemos que os EUA estão bastante para trás devido àqueles três domínios: implicação em conflitos, pois devido à sua postura global estão implicados na maioria dos atuais conflitos no mundo; na segurança interna, em relação a detenções, homicídios, perceção de violência, etc., eles também não estão bem classificados e todos sabemos porquê; em relação aos níveis de militarização, eles têm um dos orçamentos mais elevados do mundo. Portanto, são um país ocidental, mas têm também este poder global, com implicações também globais, que gera algumas decisões a nível político sobre o investimento nas Forças Armadas que é uma espécie de projeção do seu poder no mundo”.
Há países que são verdadeiros bons exemplos de progresso nos últimos dez anos no IPG, como é o caso do Butão, hoje 18.º. “Antes da guerra, a Ucrânia estava realmente a subir no índice, a fazer os bons investimentos, mas é evidente que tudo isso mudou completamente com a agressão russa”, nota Stroobants.

Segundo o belga, “vemos vários países a investirem seriamente na paz e nos sistemas de transformação das suas sociedades. Cada vez que elaboramos um índice temos países que nos abordam e perguntam se podem fazer melhor ou se podem atingir uma melhor posição no índice. Podemos ver claramente a ligação entre a paz positiva e a paz negativa. Por exemplo, quando analisamos os três domínios da paz positiva conseguimos identificar o impacto negativo que vem da atitude. Temos boas instituições e estruturas, mas as atitudes estão a deteriorar-se. Quando olhamos para a paz negativa na Europa, por exemplo, os níveis de agitação civil aumentaram entre 20 por cento e 50 por cento nos últimos dez anos, portanto vemos claramente a ligação entre o que estava a correr mal na paz positiva e o impacto direto na paz negativa. O que nós fazemos também é uma espécie de linha de força a que chamamos défice de paz positiva. Quando vemos que os países fazem um investimento menor na paz positiva do que a sua classificação na paz negativa no Índice de Paz Global. Isso diz-nos que esses países estão em risco de cair na armadilha da violência e quanto maior for o défice, mais alta é a probabilidade e a velocidade de caírem na violência. A ligação crucial entre o investimento feito e os resultados que se obtêm nos níveis de paz é evidente. É mais fácil compreender isso da perspetiva dos sistemas. O sistema da sociedade como ela é atualmente está numa forma que foi influenciada pelo passado. Chamamos-lhe dependência do passado do sistema. Nós somos aquilo que somos hoje devido aos acontecimentos e decisões do passado. A partir daqui é a decisão que manda, normalmente uma decisão política, se quisermos criar uma continuidade positiva, um ciclo virtuoso, ou negativa, um ciclo vicioso. Aquilo que nós estamos basicamente a explicar através da paz positiva é que o que é preciso fazer é alimentar os nossos sistemas em direção aos ciclos virtuosos, ou seja, altos níveis de paz positiva gerarão baixos níveis de descontentamento, portanto, virtualmente sem violência. Isso pode ser atingido através de mediação, negociação, que é o que vemos em Portugal, por exemplo. Num tal sistema não é necessário investir na contenção da violência e esses ativos podem ser investidos na paz positiva. Podemos imaginar o que acontece se for ao contrário: com baixos níveis de paz positiva temos altos níveis de descontentamento, violência e contenção de violência. Nós compreendemos que será sempre necessário alguma forma de polícia e de segurança interna, assim como um certo nível de forças militares, mas o que pretendemos atingir como ‘think tank’ sobre a paz e a interseção entre a economia e a paz é uma situação em que poderemos reduzir a quantidade necessária de forças de segurança internas e externas ao mínimo, criando sociedades pacíficas”.

O IPG analisa 163 países, que representam 99 por cento da população mundial, e se a Islândia é o tradicional número um, o Afeganistão surge como o país menos pacífico do planeta. Várias personalidades constam como associadas ao IPG, desde o Dalai Lama ao Nobel da Paz bengali Mohammed Yunus, passando pela antiga presidente irlandesa Mary Robinson ou o economista americano Jeffrey Sachs, e ainda o antigo presidente americano Jimmy Carter.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN