Elio tinha quase 16 anos quando esteve, cerca de mês e meio, com o pai e o tio, Roberto e Isacco Cittone, refugiado no Colégio Pontifício Português, de Roma. Foi entre Outubro e Dezembro de 1943. “Vivíamos em Milão, tínhamos ido para Roma para fugir aos alemães”. O pai e o tio trabalhavam na venda de tapeçarias antigas. O cerco nazi apertava, nessa altura, no norte de Itália. Roma, que tinha sido ocupada pelos alemães em Setembro, dava a ilusão, apesar de tudo, de ser menos perigosa, sobretudo com um lugar para estar escondido.

O Colégio, residência dos padres portugueses que estudam em Roma, aparentava ser o sítio seguro de que os três judeus precisavam. Dirigido pelo padre Joaquim Carreira, natural da Caranguejeira, próximo de Fátima, o Colégio acolhia já vários refugiados – professores, médicos, operários, estudantes, funcionários públicos, militares… Havia entre eles pessoas com ideias políticas diferentes: socialistas, antifascistas, resistentes partigiani, funcionários do Governo fascista de Mussolini…

Por uma razão ou por outra, todos se sentiam ameaçados pelo poder nazi ocupante e uma casa de padres parecia ser um lugar seguro. Até porque todos os edifícios pertencentes à Santa Sé – e era também o caso do Colégio Português – tinham afixados à porta dois avisos, em italiano e alemão. Assinados pelo comandante alemão em Roma, o general Reiner Stahel, os cartazes diziam: “Este edifício tem fins religiosos e está na dependência do Estado da Cidade do Vaticano. São interditas quaisquer buscas ou apreensões”. Apesar disso, muitas eram as casas religiosas invadidas à procura de refugiados. E o próprio Colégio Português foi objecto de uma busca, felizmente sem consequências para os refugiados.

Em 2012, Elio recordava, sobre o padre Carreira: “Era muito gentil. Nunca mais o vi”, mas estou-lhe muito grato e recordo sempre o facto de ele me ter salvo a vida”. Foi este depoimento de Elio Cittone, nascido a 15 de Dezembro de 1927 e que morreu em 2015, que levou Joaquim Carreira a ser declarado “Justo Entre as Nações” tornando-se assim, em Setembro de 2014, o quarto português a receber o título outorgado pelo Yad Vashem (o instituto para a memória do Holocausto, de Jerusalém) a pessoas que arriscaram a vida para salvar judeus durante o Holocausto – a par dos diplomatas Aristides de Sousa Mendes (cônsul em Bordéus, que deu vistos a mais de 10 mil judeus) e Carlos Sampayo Garrido, embaixador de Portugal na Hungria, que salvou um milhar de judeus; e de José Brito Mendes, operário português emigrado em França, que salvou uma menina judia.

A medalha de “Justo Entre as Nações” foi entregue, em Abril de 2015, à família de Joaquim Carreira, durante uma cerimónia na Sinagoga de Lisboa; a atribuição do título foi objecto de um voto de louvor da Assembleia da República, em 16 de Abril de 2015. Depois de o sobrinho, o também padre (dos Missionários Espiritanos) João Carreira Mónico, ter escrito uma biografia sobre o tio, e depois do livro “A Lista do Padre Carreira”, uma reportagem no final de Maio com o mesmo título, parceria entre o 7Margens e a TVI, evocou a figura do padre Carreira e o seu gesto de acolhimento a refugiados, em Roma.

As “misérias da guerra”
Joaquim Carreira assumira, em 1940, embora com pouca vontade, o cargo de vice-reitor do Colégio Português. Estava com 31 anos e completara a 24 de Abril, seis dias antes de partir para Roma, o curso de pilotagem de aviões. Em 1941, com a morte do reitor, monsenhor Manuel Pereira Vilar, passaria a desempenhar o cargo de reitor interino.

As dificuldades próprias de uma situação de guerra não sofreram grandes alterações no início da ocupação nazi da cidade. Mas, com o tempo, agravaram-se. Os meios de transporte foram suspensos, os alemães requisitaram pessoas para trabalhar, a “caça aos hebreus” redobrou – e, na noite de 16 de Outubro de 1943, mais de mil foram levados para campos de extermínio, entre os cerca de 13 mil que compunham a comunidade judaica na cidade. “Concedi asilo e hospitalidade no colégio a pessoas que eram perseguidas na base de leis injustas e desumanas”, escreveu o padre Carreira no relatório. Uma decisão que o levou a tomar um “maior contacto com as misérias, as dores e as tragédias em consequência da guerra”.

Pelo Colégio, terão passado, naqueles nove meses que durou a ocupação nazi, cerca de meia centena de pessoas. Nem todas ao mesmo tempo, nem todas durante todo o tempo. Outro dos refugiados foi o jovem Luigi Priolo, o mais novo de todos os que por ali passaram. Tinha 14 anos, terá ido para Roma por vontade dos pais, para ficar longe dos bombardeamentos que atingiam o Sul do país – o pai era autarca socialista em Reggio Calabria. Joaquim Carreira “era a pessoa mais extraordinária que alguma vez” Luigi Priolo conheceu, dizia o próprio, em Novembro passado, para a reportagem referida. “Para fazer aquilo que ele fez, a ajuda que deu aos outros, tem de se ter uma coragem infinita”.

Além das pessoas que salvou na casa que dirigia, o padre Carreira ajudou a esconder mais cerca de centena e meia de mulheres e crianças em casas religiosas femininas. O que significa que terá ajudado a salvar pelo menos cerca de duas centenas de pessoas. Entre a documentação guardada no arquivo do Colégio, contam-se dezenas de cartas que vários dos refugiados escreveram depois ao padre Carreira, agradecendo o acolhimento que ele lhes dera – incluindo o médico Giuseppe Caronìa, reitor da Universidade de Roma, ele próprio também declarado Justo Entre as Nações, por ter escondido na Clínica das Doenças Infecciosas da Universidade, como se fossem doentes, vários judeus e outras pessoas perseguidas. Os contactos entre os hóspedes e os alunos do colégio foram “eficazes e instrutivos”, do ponto de vista da formação dos padres, escrevia ainda o padre Carreira. E a circunstância extraordinária não perturbou de nenhum modo os “estudos e a tranquilidade” do colégio nem as actividades estritamente religiosas da casa.

“Cheios de medo”
Fora do relatório e das cartas, são poucas as referências ao gesto de Joaquim Carreira. Além de que o próprio não falava quase nunca do que acontecera. Numa carta ao então bispo de Leiria, José Alves Correia da Silva, o padre Carreira descrevia os bombardeamentos, os longos alarmes, as dificuldades em sustentar os alunos e os dias e noites horríveis que passava, chegando a pedir para regressar a Portugal. “A ocupação de Roma não se fez sem derramamento de muito sangue. (…) Durante três dias e três noites tivemos de comer e dormir ao som de tiros de canhão, rajadas de metralhadora, bombas de mão… No Vaticano acho que estão cheios de medo. E com razão”.

Numa outra carta, com a tomada de Roma consumada pelos nazis, acrescentava: “Impossível descrever a mínima coisa da tragédia a que temos assistido: a realidade excede toda a imaginação. E ainda por aí haverá ‘amigos da situação’ que se atrevem a dizer que as barbaridades, roubos e opressões que se contam são coisas inventadas pela propaganda adversária? Miseráveis! Nunca supus eu que deveria alguma vez assistir a tamanhos horrores. (…) Andamos todos com o credo na boca…”
Além destas, a única referência ao que Joaquim Carreira fizera surge numa carta da Congregação para os Seminários, ainda em 1944, na qual o Vaticano se congratulava, logo após a libertação de Roma, com o “bem “que ele fizera “em circunstâncias excepcionais”.

Devoto de Fátima, Joaquim Carreira seria, em 1970, convidado pelo bispo de Leiria, João Pereira Venâncio, para o cargo de reitor do Santuário. O padre Carreira recusou, justificando não ter capacidade para o lugar. Queria partir para missão em Timor–Leste, mas acabaria por permanecer como conselheiro da embaixada de Portugal junto da santa Sé.

Em Roma ficou, com a memória dos gestos que teve durante os meses terríveis de 1943-44. Em Roma morreu, em 7 de Dezembro de 1981, na casa Madona di Fatima, das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras, onde residia. Vinte anos depois, o corpo seria trasladado de Roma para a Caranguejeira, Leiria, numa cerimónia que mobilizou a comunidade local em cortejo até ao cemitério. Ficou a memória de um homem Justo, que agiu em nome do Evangelho.

Texto: António Marujo, Jornalista do setemargens.com

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico.
A reportagem citada pode ser vista em setemargens.com / A Lista do Padre Carreira