Todos os cardeais eleitores que nesta quarta-feira, 7 de maio, iniciam o conclave para escolher o sucessor do Papa Francisco estão já em Roma e a maioria confirma que deseja alguém na continuidade do legado de Bergoglio. Ou seja, a minoria liderada pelos adeptos de uma linha imobilista – os cardeais Robert Sarah, Gehrard Muller, Raymond Burke – não terá sequer possibilidades de bloquear o escrutínio (seriam necessários pelo menos 45 votos para isso, ou seja, mais de um terço dos 133). O seu alcance não deverá passar dos 20 votos.
Pelo menos, essa é a conclusão que se retira das sínteses das últimas três congregações gerais, realizadas segunda (manhã e à tarde) e terça-feira (de manhã). Na 12ª e última congregação geral, na manhã de 6 de maio, emergiu, entre os principais temas abordados, a “consciência de que muitas das reformas promovidas pelo Papa Francisco precisam de ser continuadas”. E citavam-se “a luta contra os abusos, a transparência económica, a reorganização da Cúria, a sinodalidade, o compromisso com a paz e o cuidado com a criação”. Ou seja, um resumo de várias das prioridades de Francisco e do seu pontificado.
Isso mesmo já tinha sido confirmado pelos cardeais António Marto, bispo emérito de Leiria-Fátima, e Manuel Clemente, patriarca emérito de Lisboa, domingo passado, após a missa que celebraram na Igreja de Santo António dos Portugueses, em Roma. Na tarde de terça-feira, 6, em declarações citadas pela Ecclesia, o cardeal Clemente insistiu no perfil “muito pastoral” que se está a desenhar, no sentido de uma “pessoa próxima”, que tenha em conta a emergência climática, as migrações, os conflitos. Guerras como as de Gaza, Ucrânia ou Sudão merecem alguém “habilitado a dar uma resposta”.
Nas últimas três congregações, sucederam-se temas onde se pode ler a continuidade desejada: “enfrentar com decisão as alterações climáticas, reconhecidas como um desafio global e eclesial”; as migrações e a “urgência” acompanhar e apoiar os migrantes na sua fé, “em contextos de mobilidade e de mudança”; a celebração da eucaristia também como “sacramento de Cristo presente nos pobres”; “o caminho sinodal sobre a sinodalidade, vista como expressão concreta de uma eclesiologia de comunhão, na qual todos são chamados a participar, escutar e discernir juntos”; “o empenho e a responsabilidade dos cardeais no apoio ao novo Papa, chamado a ser um verdadeiro pastor, um guia que sabe ir para além dos limites da Igreja Católica, promovendo o diálogo e construindo relações com outros mundos religiosos e culturais”; a memória da acção do Papa Francisco durante os dias da covid-19, “como uma porta aberta de esperança no tempo do medo”…
A fragmentação do mundo
As guerras e conflitos que dilaceram o mundo também têm sido muito referidos. Os cardeais redigiram mesmo uma declaração oficial, apelando às partes envolvidas em vários conflitos internacionais no sentido de um cessar-fogo permanente e do “início de negociações que conduzam a uma paz justa e duradoura, no respeito pela dignidade humana e pelo bem comum”. Nas intervenções das congregações gerais, não faltou “o testemunho directo de cardeais de regiões afectadas por conflitos”.
Em resumo, os cardeais preocupam-se com “a transmissão da fé, o cuidado da criação, a guerra e a fragmentação do mundo”. Se parece clara a confirmação da orientação programática, também é evidente que o sector minoritário não desiste. Vários cardeais criticaram, ao longo dos últimos 12 anos, as propostas reformadoras de Francisco – nomeadamente no campo da moral familiar e sexual, a ordenação de mulheres diáconos, o processo da sinodalidade ou a condenação da “economia que mata” e da falta de medidas eficazes contra a emergência climática.
Algumas entrelinhas de vários temas referidos nas congregações gerais apontam para o desejo de correção da linha adoptada por Francisco. “A forma como os cardeais são chamados a exercer o seu papel em relação ao papado actual”, o problema que representa “a difusão das seitas em várias partes do mundo”, o “papel do Estado da Cidade do Vaticano, e “as divisões no seio da própria Igreja” são enunciados que podem ser lidos naquela perspectiva.
Na antecâmara do conclave, apareceram diferentes vozes e iniciativas que pretendem influenciar a escolha dos cardeais. Vários membros do Colégio com mais de 80 anos, ou seja, que já não têm voto no conclave, apareceram em entrevistas ou declarações nos últimos dias a rejeitar o legado do Papa Francisco. Beniamino Stella, 84 anos, criticou-o publicamente dizendo que houve uma ruptura com a “tradição de longa data” da Igreja Católica e acusando o anterior Papa de colocar homens e mulheres leigos em cargos de autoridade na Cúria Romana, contra o que era tradicional. Angelo Bagnasco, 82 anos, antigo arcebispo de Génova, aponta como “apocalíptica” a modernidade que a Igreja Católica tem de enfrentar e definiu a cultura ocidental com “um vírus” que espalha o vazio da alma. E o cardeal Camillo Ruini, 94 anos, afirmou que o novo papa deve “devolver a Igreja aos católicos”, acentuando a doutrina e estrutura, que considera ambas ameaçadas.
Entre as iniciativas dos últimos dias, o 7Margens referiu já uma recepção de magnatas americanos que pretendia “angariar mil milhões para ajudar a Igreja, desde que tenhamos o Papa certo”, como dizia um dos presentes a um jornalista do Sunday Times.
Um documento em forma de livro contendo os perfis de 40 cardeais foi distribuído a muitos participantes no conclave, noticiaram a CNN e a Reuters. The College of Cardinals Report (O Relatório do Colégio dos Cardeais) foi preparado por dois jornalistas, está disponível em linha mas também teve uma edição em livro de grande formato.
No livro, descrevem-se as posições dos biografados em “temas como a bênção de pessoas do mesmo sexo, a ordenação de diáconos do sexo feminino e a doutrina da Igreja sobre a contracepção”, descreve a CNN. “O subtexto: Escolher um papa que leve a Igreja numa direcção diferente da do Papa Francisco – cujas reformas progressistas irritaram alguns conservadores”, acrescenta o jornalista Christopher Lamb.
“Radicalmente anti-Francisco”
Mas há mais: uma das autoras, Diane Montagna, dos Estados Unidos, foi vista pela Reuters a entregar o livro aos cardeais que entravam e saíam das reuniões preparatórias. E a CNN confirmou junto de um dos não eleitores, com mais de 80 anos, que também recebera um exemplar do mesmo.
Montagna e o outro autor, Edward Pentin, da Grã-Bretanha, têm ambos trabalhos publicados em sites de notícias católicas tradicionalistas, acrescenta a CNN. E ambos dizem que as informações do livro foram recolhidas por uma “equipa internacional e independente de jornalistas e investigadores católicos”.
O documento teve o apoio da Sophia Institute Press, editora tradicionalista com sede em New Hampshire, e a Cardinalis, revista com sede em Versalhes, França, que tem também uma versão digital e vem publicando, nos últimos meses, perfis de diversos cardeais – acentuando os elogios nos casos de personalidades do lado imobilista como Burke ou Müller e carregando nas críticas aos que apoiam o Papa Francisco. A editora do Sophia Institute publica a revista Crisis Magazine, definida pela CNN como “radicalmente anti-Francisco” e, em 2019, o livro Infiltration, por ela editado, descreve que, no século XIX, um grupo de “modernistas e marxistas” elaborou um plano para “subverter a Igreja Católica por dentro”.
As regras dos conclaves definidas pelo Papa João Paulo II, tantas vezes usado como bandeira pelos que criticam Francisco, proíbem, sob pena de excomunhão, “todas as formas possíveis de interferência, de oposição” das autoridades políticas, incluindo “qualquer indivíduo ou grupo” que “possa tentar exercer influência na eleição do Papa”. O secretismo do conclave nasceu precisamente para evitar influências externas já que, muitas vezes, as famílias romanas, primeiro, e os monarcas europeus, depois, tentavam influenciar o voto. Vários reis tiveram mesmo o poder de veto na eleição papal – a última vez que isso aconteceu foi em 1903, com o imperador Francisco José, da Áustria, a contrariar a previsível eleição de Mariano Rampolla, acabando eleito Giuseppe Sarto, que viria a ser Pio X.
Mas há mais: a Sophia Institute Press tem uma parceria com a EWTN (The Eternal Word Network, a maior emissora religiosa do mundo, que tem dado muito espaço aos críticos de Francisco; o Instituto Napa e a Papal Foudation, dois grupos católicos que reúnem filantropos e milionários, estiveram em Roma nos últimos dias a promover iniciativas – uma dela, a recepção que poderia reunir os mil milhões para o “Papa certo”, tendo em conta os pesados défices da Santa Sé nos últimos anos. Vários membros destacados destes grupos são apoiantes da Administração Trump. Tal comop acontece com o Instituto Acton, que promoveu encontros em Sintra nos últimos anos, também com o objectivo de promover a “sã doutrina” católica anti-Francisco.
A confirmarem-se as informações de muitos cardeais e os comunicados das reuniões preparatórias, o conclave votará pela continuidade do legado e da dinâmica reformadora de Francisco. Mas isso só se poderá confirmar depois de o fumo branco sair da chaminé da Capela Sistina. E, assim sendo, também parece garantido que os sectores imobilistas continuarão a fazer oposição ao novo Papa.
Texto redigido por António Marujo/jornal 7Margens, ao abrigo de uma parceria com a Fátima Missionária. O autor escreve segundo a antiga ortografia.