Tem sido consensual, desde a sua estreia mundial, em finais de 2024, considerar Conclave como um thriller. Para os leitores menos familiarizados com o jargão cinematográfico de género, digamos de forma sumária: trata-se de um género marcado por uma atmosfera de mistério e tensão (muitas vezes de suspense), desenvolvendo uma intriga que se assume frequentemente como investigação policial e que mantém o espectador alerta para frequentes reviravoltas da história. Por vezes o thriller pode associar-se ao subgénero designado de cinema negro ou noir que, além das características estéticas próprias, de cor, iluminação e atmosfera, envolve também marcas policiais. O thriller, já o encontramos no período dito do cinema mudo, e o noir desenvolve-se com grande prestígio, na produção americana, a partir do marco de 1940, de John Huston, The Maltese Falcon (Relíquia Macabra). Esta singela excursão semântica ajudará o leitor menos iniciado a entender o clima tecido pelo realizador alemão Peter Berger e pela história urdida pelo escritor e argumentista inglês Robert Harris, muito bem servido pela fotografia escurecida (outra característica) de Fontaine e, sobremaneira, com a excelente banda sonora do alemão Bertlemann, geradora ela própria de suspense.
Feito este singelo quadro, a pergunta de partida é saber se a moldura da eleição de um Papa, no Vaticano (mais circunstanciadamente na Capela Sistina e na Casa de Santa Marta), oferece ingredientes para um thriller. A olhar para a realidade concreta da vida a resposta será: ‘provavelmente’ não. Tendo em consideração “a mentira 24 vezes por segundo” do cinema (expressão metafórica que alguns atribuem a Godard) e a saudável construção ficcional dos filmes, a resposta é, sem dúvida, sim. De resto, tal como na literatura e no teatro.
Os consideráveis meios de produção de Conclave ajudam a criar um ambiente credível no que respeita ao pano de fundo. O realizador afirma ter contado com especialistas em matérias do Vaticano. E isso nota-se. Sobretudo na reconstituição da Capela Sistina nos estúdios da Cinecittà, na criação (para melhor, diz Berger) de uma alternativa à Casa de Santa Marta e, sobretudo, na verosimilhança do guarda-roupa, adereços e rituais próprios. Não convencerá, porventura, o recurso a palácios e claustros romanos, na impossibilidade de filmar no Vaticano. Os palácios são décor vistoso, a compor belas imagens de tetos, soalhos e escadarias, mas não são credíveis, na circunstância.
Mas o que mais interessa são as pessoas e o que elas tecem, bem como o que à sua volta se vai entretecendo, malgrado os protagonistas. São, fundamentalmente, os cardeais e a religiosa coordenadora dos serviços de apoio à ‘máquina’ conclavista (Rossellini). E aquilo a que assistimos são jogos de poder, ‘guerras’ intestinas pelo poder, por homens que, por uma razão ou por outra, são ‘candidatos’ e para os quais a possibilidade de poder muito apetece. Sejam – para usar uma gíria prática – progressistas ou conservadores. E, nesse sentido, Berger propõe estereótipos um pouco elementares, uns mais trágicos, outros mais histriónicos, como acontece com a figura ultraconservadora do cardeal Tedesco (Castellitto).
Disso destoa positivamente a figura do cardeal decano, responsável pelo Conclave, muito bem encarnada pelo notável actor britânico Ralph Fiennes. Trata-se de um perfil muito mais elaborado, trabalhado para o público com ele se identificar, mas, ainda assim, complexo, na sua amargura – pelo peso que os seus ombros suportam (chega a afirmar não ser polícia para investigar os seus irmãos) – pelas suas dúvidas de fé, pela sua inteireza humana.
Como seria inevitável, o argumento (vencedor do Óscar para melhor argumento adaptado) engloba referências pontuais ao ar do tempo: um pano de fundo de terrorismo urbano, a questão feminina relacionada com as mulheres na estrutura da Igreja e a androgenia (!) do eleito Papa (Diehz), na figura improvável de um cardeal criado in pectore pelo defunto pontífice, um surpreendente arcebispo de Cabul, no Afeganistão… É assim, com estas pessoas, que se tece uma atmosfera de alta intriga, de algum crime (há um cardeal simoníaco que ‘comprara’ votos para ser eleito e é desmascarado), das reviravoltas que conduzem à eleição de um inesperado candidato, no momento em que tudo parece inclinar a balança para um outro. E, para além da intriga, planos decorativos, que se querem simbólicos (de quê?), como o que, em picado, nos dá uma multidão de cardeais – bem superior aos que estão em conclave – empunhando guarda-chuva brancos e enchendo uma praça, a evocar a de S. Pedro.
Nestes dias que nos aproximam de 7 de Maio – na abertura do Conclave que elegerá o sucessor do querido Papa Francisco – ouvimos e lemos com frequência que precisamos de pastores, de homens de Deus, de esperança, de misericórdia, de diálogo… de sinodalidade. No fundo, muito do amplo universo que Francisco era. Tudo isso está (quase) ausente no conclave de Peter Berger e Robert Harris. Porém algo deveremos ter em conta: os cardeais que agora se reúnem em Congregações Gerais, preparando o conclave, são seres humanos. Têm as suas convicções, as suas preferências. Muitos são seguidores de Francisco. Uns quantos foram seus críticos acérrimos, recusando (de forma pelo menos descortês) os caminhos propostos e trilhados pelo Papa. Por maior fantasia que exista em Conclave, sabemos que, nas circunstâncias reais, nem tudo é puro como o cristal. Quem esteja atento, disso mesmo se dará conta, naquilo que alguns vaticanistas conseguem ler na atmosfera mediática do Vaticano destes dias e no-lo transmitem.
Conclave
Thriller/drama
Realização: Peter Berger (n.1970)
Argumento: Peter Strauhgan e Robert Harris, a partir de um romance de Harris
Fotografia: Stéphane Fontaine
Montagem: Nick Emerson|
Música: Volker Bertelmann
Intérpretes: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, Isabella Rossellini, John Lithgow, Sergio Castellitto, Carlos Diehz e outros
Produção: Reino Unido e EUA (2024)
Texto redigido por Carlos Capucho/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária