Quando os cristãos de Damasco saíram à rua em protesto a 24 de dezembro de 2024 contra o fogo deitado a uma árvore de Natal que estava numa praça de Al-Suqaylabiyah, uma pequena cidade 200 quilómetros a norte da capital, não estavam só a reagir a um incidente que até poderia ser caso isolado, mas sim a mostrar receio do que pode vir aí com o novo regime sírio, liderado por extremistas islâmicos. Antes do início da guerra civil na Síria, em 2011, calculava-se que os cristãos seriam cerca de um décimo dos 22 milhões de habitantes do país, uma comunidade próspera, bem integrada numa sociedade de maioria islâmica. O facto de o regime de Bashar al-Assad ser panarabista, e laico, garantia também segurança aos dois milhões de cristãos sírios, desde, claro, que, como comunidade ou individualmente, não pusessem em causa o domínio do Partido Baas nem o poder da família Assad. Bashar, no poder desde 2000, sucedeu ao pai, Hafez, que foi o homem forte da Síria durante três décadas.
A Síria é hoje governada por uma coligação de movimentos rebeldes, na qual a Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, em árabe, daí a siga HTS) é preponderante. Ahmad al-Chareh é o novo homem forte, e mesmo que nas últimas semanas tenha trocado o uniforme militar por fato e gravata e feito declarações conciliadoras, não é esquecida a sua anterior ligação ao Estado Islâmico e à Al-Qaeda. Mesmo cansadas de mais de uma década de conflito, e vítimas de uma forma ou outra também da brutal ditadura dos Assad, as minorias étnicas e religiosas da Síria receiam ser maltratadas por um novo governo controlado por grupos armados muçulmanos sunitas, que no passado mostraram seguir um Islão muito rigoroso nas zonas que controlavam, em especial na província de Idlib. Além dos protestos pela árvore de Natal incendiada numa cidade de maioria cristã, houve também manifestações dos alauitas, a seita do Islão xiita a que pertence a família Assad e que também representa dez por cento dos sírios, por um ataque a um dos seus templos.
Consciente da atenção que o Ocidente vai dar à situação dos cristãos, e desejoso de dar a tal imagem de líder moderado, al-Chareh promoveu no último dia de 2024 um encontro com dignitários de várias igrejas, da católica à anglicana, passando pela ortodoxa grega e a arménia. Como em todo os países do Médio Oriente, com a exceção do Egito em que a Igreja Copta é claramente dominante, os cristãos sírios pertencem a várias correntes, com diferenças teológicas explicadas pela História.
Hoje serem menos de cinco por cento da população da região (excluindo os imigrantes nos países ricos do Golfo Pérsico) quando no início do século XX eram mais de dez por cento, mostra o quão difícil tem sido a situação dos cristãos no Médio Oriente, sofrendo com o fim do Império Otomano e a emergência de Estados nacionais depois de um curto período de colonização britânica e francesa. As sucessivas guerras civis, o terrorismo de inspiração jihadista e a predominância de regimes ditatoriais levaram muitos a emigrar, como aconteceu no Líbano, onde deixaram de ser a maioria, ou no Iraque, onde o êxodo iniciado já no século XXI depois da queda de Saddam Hussein parece ainda não ter terminado, apesar de uma visita do Papa Francisco em 2021 para animar os cristãos a permanecer fiéis à religião mas também ao seu país.
Em tempos, entrevistei o arcebispo de Erbil, que estava de visita a Portugal. E à pergunta se, como cristão do Médio Oriente, se considerava parte de uma espécie ameaçada de extinção, a resposta de Bashar Warda foi: “Sim, sinto. No sentido em que a longa história do cristianismo lá é também uma longa história de perseguição à Igreja. O Médio Oriente atravessou uma série de mudanças e de dificuldades e nós sempre sobrevivemos. Claro que houve tempos mais florescentes, os tempos da Igreja de Antioquia, e que hoje os nossos números estão a reduzir-se. No campo da teologia, está agora a redescobrir-se a riqueza do cristianismo dessa parte do mundo, mas quando falamos da situação política sentimo-nos vítimas, negligenciados, esquecidos pelos políticos. E sim, as pessoas têm medo de que o cristianismo possa desaparecer do Médio Oriente se o caminho continuar a ser este. Mas tenho muita fé e esperança que o cristianismo não se extinga na região.”
Também algum otimismo, moderado, expressou agora o sacerdote jesuíta Vincent de Beaucoudrey, diretor do Serviço Jesuíta para os Refugiados para a Síria, instalado há vários anos no país. Entrevistado pelo Vatican News em Damasco, em vésperas do Natal, disse: “o que as novas autoridades estão a dizer é que querem formar uma Síria com os cristãos e que cada um tenha o seu lugar. Em Aleppo, onde já estão empossados há dez dias, permitiram decorações de Natal nas igrejas, nas fachadas, etc. Então, no curto prazo, sim. A ansiedade é em relação ao longo prazo, no rumo que o país tomará. Esta ansiedade existe porque o país ainda não está estabilizado. Mas sobre o facto de podermos celebrar o Natal, temos sinais que dizem que sim. Somos cristãos e por isso o jogo é apostar na esperança.”
Tirando os cerca de 300 mil cristãos da Turquia e um número semelhante no Irão, os cristãos do Médio Oriente são na sua esmagadora maioria árabes, e descendem de populações que já viviam na região antes do nascimento do Islão no século VII. Os sucessivos impérios islâmicos toleraram a sua presença por, tal como os judeus, serem um povo do livro. Ou seja, crentes num só Deus. Mas tinham de pagar impostos especiais, alguns altos cargos estavam-lhes vedados e sofriam ocasionais perseguições. Durante a época das Cruzadas, mais ou menos há mil anos, e também durante o colonialismo europeu do início do século XX foram vistos como uma espécie de quinta coluna do Ocidente. Sobretudo a França, que dominou a Síria e o Líbano após o fim do Império Otomano, tentou usar os cristãos como aliados, e a criação do moderno Líbano foi em grande parte um esforço para criar um país cristão árabe dominado pelos maronitas. Ainda hoje a Constituição libanesa impõe que o presidente da república seja sempre um membro da comunidade cristã maronita, que é uma igreja oriental obediente a Roma. O chefe da Igreja Maronita, Béchara Boutros Rai, é cardeal e se agora, por já ter mais de 80 anos, não integra o colégio dos cardeais eleitores, em 2013 participou no conclave que escolheu Francisco.
As estimativas apontam para 15 a 20 milhões de cristãos árabes, com cerca de 10 a 12 milhões a serem egípcios. Protegidos pelas autoridades, em nome de uma nação unida cujas origens remontam ao tempo dos faraós, os coptas não deixam por isso de ser atacados pelos fanáticos que consideram o Egito terra exclusiva do Islão. Por exemplo, em abril de 2017, duas igrejas em Alexandria e na região do delta do Nilo, foram alvo de atentados do Estado Islâmico, morrendo 45 pessoas. Também houve ataques terríveis no Iraque, como a uma igreja em Bagdad, em novembro de 2010, que provocaram mais de 50 mortos.
Em termos percentuais, o país árabe com mais cristãos é o Líbano, calculando-se que 40 por cento dos 5,5 milhões de habitantes serão maronitas e de outras igrejas. A questão dos números oficiais é recorrente de país para país, não só por causa dos refugiados de guerra, como na Síria, mas também por razões políticas. O nacionalismo egípcio interdita perguntar a religião dos cidadãos nos censos, enquanto no Líbano os censos são eternamente adiados para não porem em causa o equilíbrio político entre as diferentes comunidades, pois desde o fim da presença francesa que o sistema do novo país independente em 1943 impõe um presidente cristão maronita, um primeiro-ministro muçulmano sunita e um presidente do parlamento muçulmano xiita. Este excecionalismo libanês garante que nas cimeiras da Liga Árabe, entre os 22 chefes do Estado presentes, está sempre um cristão. O atual presidente do Líbano é Joseph Aoun.
Embora minoritários, os árabes cristãos deram algumas figuras famosas, como o egípcio Butros Ghali, que foi secretário-geral das Nações Unidas, Tarek Aziz, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros quando Saddam Hussein liderava o Iraque, Hanan Ashrawi, antiga ministra da Educação da Autoridade Palestiniana, ou Amin Maalouf, escritor libanês. A forte tendência para a emigração da comunidade, levou a que na América Latina haja muitos descendentes de árabes cristãos de destaque, como o milionário mexicano Carlos Slim e os antigos presidentes de El Salvador e do Brasil Elias Saca e Michel Temer.
Um dos conflitos que mais afetou a comunidade de árabes cristãos é o israelo-palestiniano, pois hoje menos de 50 mil cristãos vivem na Cisjordânia e em Gaza, apesar da tradição cristã ser ainda muito forte em cidades como Belém, onde está a Basílica da Natividade. Em Israel, onde dois milhões de árabes vivem juntamente com oito milhões de judeus, calcula-se que haja cerca de 150 mil cristãos. Na cidade de Nazaré são um terço da população.
A 11 de dezembro de 2024, três dias depois da queda de Assad (que se refugiou na Rússia), o Papa fez um apelo à coexistência na Síria: “Rezo para que o povo sírio possa viver em paz e segurança na sua amada terra e que as diferentes religiões possam caminhar juntas em amizade e respeito mútuo pelo bem daquela nação afligida por tantos anos de guerra”. A incerteza continua, porém, e os cristãos sírios pouco podem fazer senão esperar que os novos governantes mostrem alguma sabedoria.
Aquando da visita de Francisco ao Iraque em 2021, um autor de vários livros sobre os cristãos do Médio Oriente, o historiador francês Jean-François Colosimo, deu uma entrevista ao jornal Le Monde a relembrar “que nós vemos o cristianismo como uma religião ocidental, pois foi na Europa que se desenvolveu. Mas na sua origem o cristianismo é uma religião do Médio Oriente. Os cristãos do Médio Oriente não são os irmãos pequenos perdidos na outra costa do Mediterrâneo, são sim os irmãos mais velhos dos cristãos do resto do mundo. Eles atestam da permanência do Evangelho não somente no seu berço, a Terra Santa, mas também no território geográfico onde se desenvolveu a comunidade cristã primitiva: do Egito – com Alexandria, cidade de São Marcos – ao mundo semítico que se estende para a Mesopotâmia e para o Crescente fértil, dominado pela cidade de Antioquia – onde, segundo os Atos dos Apóstolos, os cristãos foram pela primeira vez chamados de cristãos”.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN