Após um ataque, palestiniano chora a morte de uma criança no Hospital Nasser, no sul da Faixa de Gaza, em novembro | Foto: Lusa

Esta é a história-testemunho da jovem Lily Greenberg Call, uma judia americana que exercia funções na Administração Biden, que se tornou há escassos dias a primeira figura de nomeação política a demitir-se de funções, em aberta discordância com a política do governo norte-americano relativamente a Gaza. Em declarações à comunicação social, conta como foi o seu processo interior e sublinha como os valores do judaísmo, em que cresceu, foram vitais para a decisão que tomou.

Depois de ter colaborado nas campanhas presidenciais de Kamala Harris e de Joe Biden, Lily Greenberg Call passou a exercer funções de secretária especial no gabinete da titular da pasta do Interior dos Estados Unidos, a ‘ministra’ Deb Haaland.

Oriunda de uma família que escapou da perseguição antissemita na Europa e encontrou refúgio na América, Lily Greenberg Call acreditou que a Administração Biden, entre outros valores, trabalharia por “um planeta saudável e direitos iguais para todas as pessoas”. Além disso, sentiu-se inspirada pela secretária Haaland e pelo seu “histórico de princípios na defesa de causas progressistas”, além do seu papel como mulher indígena a liderar um departamento que, no passado, “provocou danos às comunidades indígenas, com o potencial que isso tem para reparações, reconciliação e cura”.

“No entanto, faz notar a agora ex-colaboradora, não posso continuar, em sã consciência, a representar esta administração, dado o apoio desastroso e contínuo do Presidente Biden ao genocídio de Israel em Gaza”. Além disso, acrescenta que, ao longo dos últimos oito meses, se tem perguntado muitas vezes: “qual é o sentido de ter poder se não o usamos para impedir crimes contra a humanidade?”

Ter o poder e não impedir crimes contra a humanidade

Ela, que foi educada e continua ligada à comunidade judaica nos EUA e em Israel, país onde viveu e aprendeu hebraico e árabe, onde tem familiares e amigos, incluindo nas forças armadas, algumas das quais perderam entes queridos no ataque do Hamas em 7 de outubro, diz-se “aterrorizada com o aumento do antissemitismo em todo o mundo”.

Apesar disso, e talvez por causa disso, Lily contrapõe, na carta de demissão que divulgou na rede digital X (ex-Twitter): “No entanto, estou segura de que a resposta a esta questão não é punir coletivamente milhões de palestinianos inocentes através da deslocação, da fome e da limpeza étnica. A ofensiva contínua de Israel contra os palestinianos não mantém o povo judeu seguro – em Israel nem nos Estados Unidos. O que aprendi com a minha tradição judaica é que cada vida é preciosa. Que somos obrigados a defender aqueles que enfrentam violência e opressão e a questionar a autoridade face à injustiça”.

A agora demissionária chama a atenção para as mais de 35.000 pessoas que Israel matou em Gaza, incluindo 15.000 crianças; para os bombardeamentos feitos pelos militares israelitas sobre infraestruturas médicas, tendo sitiado um hospital, deixado valas comuns para trás, destruindo todas as universidades de Gaza, atacando jornalistas e trabalhadores humanitários. Porém, escreve na sua carta:

“Todas estas [ações] são violações do direito internacional, nenhuma das quais seria possível sem as armas americanas, e nenhuma delas foi condenada pelo Presidente Biden. O Presidente tem o poder de exigir um cessar-fogo duradouro, de parar de enviar armas a Israel e de condicionar a ajuda. Os Estados Unidos quase não usaram nenhuma influência ao longo dos últimos oito meses para responsabilizar Israel; muito pelo contrário, permitimos e legitimamos as ações de Israel com vetos às resoluções da ONU destinadas a responsabilizar Israel. O presidente Biden tem o sangue de pessoas inocentes nas mãos”.

Lily Greenberg Call escreveu o texto da sua demissão em 15 de maio, dia da Nakba, em que se recorda a destruição da sociedade e da pátria palestina em 1948 e a expulsão da maioria do povo palestino, para a formação do Estado de Israel. Para ela a Nakba e a Shoah, palavra hebraica para Holocausto, significam a mesma coisa: catástrofe. E aproveita para afirmar:

“Rejeito a premissa de que a salvação de um povo deve resultar da destruição de outro povo”. Vai mesmo mais longe: “Qualquer sistema que exija a subjugação de um grupo em detrimento de outro não é apenas injusto, mas também inseguro. A segurança judaica não pode vir – e não virá – pondo em causa a liberdade palestiniana. Fazer dos judeus a face da máquina de guerra americana torna-nos menos seguros”.

A repercussão da carta de demissão teve algum eco nos média norte-americanos, tendo o assunto sido tema de capa no Washington Post. Numa entrevista dada ao canal digital Democracy Now, Lily Greenberg Wall estabelece uma relação entre a sua decisão de romper com a Administração Biden e de dar sinal público disso e, por outro lado, a sua vivência como membro da religião judaica.

Alargar a visão do mundo e conhecer o outro – caminhos de ‘conversão’

Interrogada expressamente sobre esse ponto, ela recordou os cerca de 20 anos de educação judaica, o estudo dos textos religiosos e os valores referenciais que adquiriu, concretizando deste modo:

“No Judaísmo existe essa ideia de pikuach nefesh, que significa ‘salvar uma vida’, e substitui qualquer outro mandamento. Cada um tem permissão para quebrar qualquer mandamento se isso significar salvar uma vida. Também dizemos: ‘salvar uma vida é salvar o mundo inteiro’. Existe essa ideia de b’tselem elohim, de que cada pessoa é feita à imagem de Deus. E assim, esses valores, além do facto de que o Judaísmo está realmente impregnado de um ethos orientado para a justiça (…), sinto que estou realmente a viver no meu judaísmo, na essência daquilo em que fui criada, ao defender os palestinianos e exigindo a sua liberdade”.

A entrevistada refere ainda que, na sua juventude, defender Israel era para ela “o caminho para proteger os judeus do antissemitismo”. Mas, especialmente nos últimos oito anos, ocorreram duas coisas em simultâneo, que a fizeram ir mudando de posição.

“A primeira, explica ela, foi que o meu mundo começou a expandir-se. Pude conhecer palestinianos, palestinianos americanos. Trabalhei com alguns refugiados sírios palestinianos na Grécia. Vi com meus próprios olhos algumas das injustiças que os palestinianos enfrentam em Israel-Palestina — os postos de controlo, o sistema de apartheid”. Por outro lado, sublinha, “estudei árabe e tive todo esse contacto com a cultura e a vida palestiniana”.

Ao mesmo tempo, a coligação de pessoas pró-Israel a que ela há anos pertencia, a AIPAC – American Israel Public Affairs Committee, começou a mover-se para a direita, à medida que Trump chegava ao poder e que o governo israelita se deslocava para a direita. Perante essas mudanças, reflete Lily Greenberg Wall, “comecei a ver essas pessoas com quem passei anos a fazer a defesa pró-Israel, em particular os cristãos evangélicos, a apoiar Trump e a apoiar fascistas de direita aqui nos Estados Unidos e pessoas que se alinhavam com os brancos supremacistas e antissemitas, certo? E então, comecei a perceber que talvez essas pessoas não estivessem ali porque investiram nos judeus e na segurança judaica”.

“Então, concluiu, essas duas coisas juntas levaram-me a perceber que me tinham contado uma mentira, e que o status quo é insustentável, e que não é apenas devastador para os palestinianos — e acho que o dia 7 de outubro deixou muito claro que também não mantém os israelitas seguros, e que se quisermos realmente criar um futuro próspero para os israelitas, para os palestinianos, para os judeus, para as comunidades com as quais nos preocupamos aqui na América, algo tem que mudar”.

Texto redigido por Manuel Pinto/jornal 7Margens, ao abrigo de uma parceria com a Fátima Missionária.