Um total de 273 parágrafos, divididos em três partes e 20 capítulos (além de uma introdução e uma conclusão), todos aprovados com mais de dois terços pelos 346 participantes presentes no momento da votação, dos 365 (incluindo o Papa Francisco). É essa a estrutura do texto da síntese da primeira sessão que, agora, é devolvido a todos os baptizados para que o debate regresse às comunidades locais, grupos, movimentos e estruturas. No texto, não faltam temas difíceis para afrontar e debater, mas os participantes na assembleia querem que todos intervenham – incluindo teólogos, pastoralistas e especialistas em Direito Canónico.

Entre os temas mais polémicos – aqueles que tiveram mais votos contra, mas não os suficientes para que os respectivos parágrafos fossem rejeitados –, estão temas como o poder e estruturas de governo da Igreja; o papel das mulheres (a possibilidade de ordenação não é referida e o diaconado feminino também é objecto de grandes divergências e tem de ser estudado); o diálogo ecuménico (hospitalidade eucarística e a possibilidade de um sínodo ecuménico); a renovação da linguagem litúrgica e o reconhecimento de mais ministérios, incluindo o da “palavra de Deus”, que permita que não-clérigos possam também fazer pregação; a necessidade de aprofundar a disciplina do celibato obrigatório; e questões de moral individual (“identidade de género” e “orientação sexual”, o fim da vida, as situações matrimoniais difíceis, a poligamia em África e as questões éticas relacionadas com a inteligência artificial).

Sobre as mulheres, a síntese diz que muitas “expressaram profunda gratidão pelo trabalho dos padres e bispos, mas também falaram de uma Igreja que fere”, pois o “clericalismo, o machismo e o uso inapropriado da autoridade continuam a marcar o rosto da Igreja e a prejudicar a comunhão”. E acrescenta o texto: “É necessária uma profunda conversão espiritual como base para qualquer mudança estrutural. Os abusos sexuais, de poder e económicos continuam a exigir justiça, cura e reconciliação. Perguntamos como pode a Igreja tornar-se um espaço capaz de proteger todos”.

O próprio documento admite que vários destes temas “levantam novas questões”, que “as categorias antropológicas” desenvolvidas até agora nem sempre captam “a complexidade dos elementos que emergem da experiência ou do conhecimento das ciências e requerem um aperfeiçoamento e um estudo mais aprofundado”. Mesmo assim, mesmo sendo necessário aprofundar o debate, “o comportamento de Jesus” indica “o caminho a seguir”.

As feridas da humanidade
Essa perspectiva traduziu-se também na forma como o sínodo levou para o centro da assembleia várias das feridas mais graves da humanidade contemporânea, através de três gestos promovidos pelo Papa: a publicação da exortação ‘Laudate Deum’ (4 de Outubro, dia de Francisco de Assis), um último grito de desespero pela terra, pela criação e pelo clima; a oração pelos refugiados, na Praça de São Pedro, junto da escultura que evoca as vagas de refugiados e migrantes ao longo da história em todos os pontos do globo, e que se seguiu a uma intervenção sentida de Luca Casarini, fundador de uma organização de socorro a refugiados; e o dia de jejum e oração pela paz, praticamente no fecho do sínodo, para registar a “hora escura” que se vive no mundo com a proliferação das guerras.

A própria síntese evoca esse contexto, ao recordar que a assembleia decorreu “enquanto no mundo grassavam velhas e novas guerras, com o drama absurdo de inúmeras vítimas”. Mas não só: “O grito dos pobres, dos que são obrigados a migrar, dos que sofrem violência ou sofrem as consequências devastadoras das alterações climáticas ressoou entre nós, não só através dos meios de comunicação social, mas também das vozes de muitos, pessoalmente envolvidos com as suas famílias e povos nestes trágicos acontecimentos”.

Os participantes reivindicaram ainda a continuidade da grande tradição da Igreja. Contra quem receia que um sínodo dos bispos com leigos e leigas, religiosas e padres (ou seja, não-bispos) possa alterar a doutrina da Igreja ou trair expectativas de quem tem “fome e sede de Deus”, a maior parte dos participantes manifestou-se confiante “de que a sinodalidade é uma expressão da tradição dinâmica e viva” da Igreja. O processo sinodal, acrescenta o texto, está “enraizado” nessa mesma tradição e o próprio processo sinodal deve levar a Igreja à missão de “demonstrar e transmitir o amor e a ternura de Deus a uma humanidade ferida”.

O sentido do caminho sinodal “é envolver todos os baptizados”, acrescenta o documento. “Leigos e leigas, consagrados e consagradas, diáconos e sacerdotes foram, com os bispos, testemunhas de um processo que pretende envolver toda a Igreja e todos na Igreja” e na assembleia de Outubro no Vaticano “ressoou a experiência de uma Igreja que está a aprender o estilo da sinodalidade e a procurar as formas mais adequadas para a realizar.

Na mesma lógica da defesa da validade e legitimidade do processo, o documento reivindica ainda o facto de o caminho sinodal da Igreja estar “de facto, a pôr em prática” os ensinamentos do Concílio Vaticano II que entre 1962-1965, tentou colocar em dia o ensinamento da Igreja. “Neste sentido, constitui um verdadeiro ato de ulterior recepção do concílio, prolongando a sua inspiração e relançando a sua força profética para o mundo de hoje. O Vaticano II foi “como uma semente lançada no campo do mundo e da Igreja” e a vida dos crentes, a experiência das Igrejas em cada povo e cultura, bem como os numerosos testemunhos de santidade ou a reflexão dos teólogos “foram o solo em que germinou e cresceu”. “O sínodo 2021-2024 continua a aproveitar a energia dessa semente e a desenvolver as suas potencialidades”, defende a síntese.

Mudanças na dinâmica
A dinâmica sinodal teve duas mudanças significativas: desde logo, o desejo do Papa de que se desenvolvesse um clima de “diálogo no Espírito”, cuja finalidade principal era que as pessoas se escutassem mutuamente e obstando ao mesmo tempo a que houvesse uma luta de protagonismos, como aconteceu nas duas sessões do sínodo sobre a família, em 2014-15; a outra foi passar a assembleia do sínodo de um anfiteatro com os participantes sentados consoante a “importância” – cardeais à frente, depois bispos, clérigos e alguns leigos atrás – para uma enorme sala com mesas pequenas pelas quais os participantes se distribuíam em grupos de dez a 12 pessoas, misturando cardeais, bispos, clérigos, religiosos e leigos. Tudo isto criava uma grande “diversidade de origens, línguas e culturas”, como diz a síntese, mesmo se “não é fácil escutar ideias diferentes, sem ceder imediatamente à tentação de retorquir” ou “oferecer a própria contribuição como um dom para os outros e não como uma certeza”.

Agora, os católicos do mundo inteiro têm à sua disposição “não um documento final, mas um instrumento ao serviço do discernimento que terá ainda de continuar”, dividido em três partes: “O rosto da Igreja sinodal” apresenta “os princípios teológicos que iluminam e fundamentam a sinodalidade”; “Todos discípulos, todos missionários” trata dos “actores da vida e da missão da Igreja e das suas relações; “Tecer laços, construir comunidade” apresenta a sinodalidade “como um conjunto de processos e uma rede de organismos que permitem o intercâmbio entre as Igrejas e o diálogo com o mundo”. Em cada uma delas, enumeram-se as convergências, as questões que ainda têm de ser aprofundadas e as propostas de caminhos a seguir: “algumas são sugeridas, outras recomendadas, outras pedidas com mais força e determinação”.

Tudo isto em nome do sentido da fé dos fiéis, que vivem a “verdadeira igualdade de dignidade e uma responsabilidade comum pela missão” entre todos os baptizados. “Pela unção do Espírito, que ‘ensina todas as coisas’, todos os crentes possuem um instinto para a verdade do Evangelho, chamado ‘sensus fidei’. Este consiste numa certa conaturalidade com as realidades divinas e na aptidão para captar intuitivamente o que é conforme à verdade da fé. Os processos sinodais potenciam este dom e permitem verificar a existência daquele consenso dos fiéis (consensus fidelium) que constitui um critério seguro para determinar se uma determinada doutrina ou prática pertence à fé apostólica”. Que é como quem diz, chegando a consensos alargados sobre determinadas matérias, isso traduz o verdadeiro sentido da fé. Nos próximos meses, a palavra está de novo devolvida aos católicos de todo o mundo – também de Portugal. A segunda sessão do sínodo dos bispos vai realizar-se em outubro de 2024.

Texto: António Marujo, jornalista do Sete Margens.
O autor escreve segundo a antiga ortografia