Bispos de Portugal na visita Ad Limina de 2015, na Basílica de São Pedro: não se trata de “prestar contas”. Foto © PR/Agência Ecclesia

Nesta segunda-feira, 20 de maio, os bispos portugueses iniciam a sua visita ad limina apostolorum, ao Vaticano, que pretende fazer regularmente um balanço dos últimos anos de atividade em cada uma das dioceses. Nas duas visitas anteriores (2007, com Bento XVI e 2015, com Francisco), os bispos ouviram várias chamadas de atenção de ambos os Papas: era preciso mudar estilo de vida e mentalidade, disse o primeiro; há uma debandada de jovens, afirmou o atual Papa em 2015, ao mesmo tempo que também elogiava o facto de ver “crescer a sinodalidade”.

Várias perguntas se podem fazer: alguma coisa terá mudado para melhor desde 2007 e 2015? Os alertas de Ratzinger e Bergoglio levaram a algum sobressalto e a iniciativas criativas e ousadas de mudança – ou provocaram, sequer, alguma avaliação? Que levam agora os bispos para “mostrar” ao Papa e aos responsáveis da Santa Sé, além da forma extremamente positiva como foi organizada e realizada a Jornada Mundial da Juventude (JMJ)? Perguntando de outra maneira: para que servirá, no futuro, esta semana de encontros no Vaticano?

Não é prestar “contas” ao chefe da multinacional

A visita, cujo título significa “ao limiar (do túmulo) dos apóstolos” é um tempo “de trabalho, de reuniões e de contactos que os bispos fazem junto da Santa Sé e dos seus diversos organismos, dicastérios e conselhos pontifícios”, explica uma nota da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). O episcopado português terá 15 reuniões com os diferentes dicastérios da Cúria Romana, além de uma audiência com o Papa na sexta-feira, último dia da visita, de um encontro com a comunidade portuguesa em Roma e de celebrações nas quatro basílicas maiores de Roma: São Pedro, São Paulo, São João e Santa Maria Maior. Normalmente, a visita faz-se a cada cinco anos. Neste caso, a pandemia e, depois, a preparação da JMJ, ditaram um adiamento.

Não se trata de prestar “contas” ao Papa, como se fosse uma “vistoria a uma multinacional”, disse este domingo, em entrevista à Agência Ecclesia e à Rádio Renascença o presidente da CEP e bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas. “Nós vamos, certamente, com vontade de ouvir, mas também levamos a nossa experiência de Igreja que é importante para o Papa, é importante para os organismos da Santa Sé que vamos visitar”, afirmou.

Em Abril, no final da assembleia plenária, e quando questionado sobre os relatórios que seriam entregues e quem os teria elaborado, o presidente da CEP quase que desvalorizava a visita ad limina, dizendo que “não há propriamente um relatório”, mas um extenso formulário com perguntas da Santa Sé, que cada bispo responde e preenche na sua diocese.

A questão dos abusos sexuais dentro da Igreja Católica “não pode deixar de estar em cima da mesa”, afirmou também o bispo, nomeadamente nos encontros nos dicastérios dos Bispos e da Doutrina da Fé. Sobre este tema, Ornelas garantiu que o episcopado não esteve “simplesmente a fazer um faz de conta” nos últimos dois anos, com as decisões de fazer um levantamento da situação. “Nós tomamos isto a sério, porque achamos que não se brinca com os sentimentos e a dor das pessoas.” Mas continua a ter-se a impressão de que há muito por fazer, nomeadamente no reconhecimento das vítimas: foram até hoje muito poucos os bispos que se encontraram pessoalmente com vítimas de abusos, são quase nenhuns os casos de condenações de padres…

A JMJ e a debandada dos jovens

Também os problemas à volta das migrações, da situação social do país e dos desafios deixados pela JMJ de Lisboa estarão presentes nos encontros. “Os jovens não se revêem em tudo o que a Igreja diz. Falta uma linguagem comum, e estas novas linguagens não são simplesmente uma questão da tradução, mas são um modo de estar com, de fazer com que os jovens tenham uma palavra a dizer, porque são eles que têm de retraduzir a linguagem de sempre”, afirmou o bispo Ornelas na citada entrevista. No entanto, tal como sucedeu antes da realização da JMJ, em que se insistiu sobretudo em celebrações litúrgicas à volta dos símbolos da jornada, e quase nada na formação bíblica, catequética ou na doutrina social católica, também agora já passou quase um ano e a CEP ainda não apresentou quaisquer linhas de rumo para o trabalho com jovens a nível nacional.

Em 2015, Francisco avisava para o facto de os jovens estarem a abandonar a prática cristã, depois do sacramento do crisma; de haver um vazio na oferta paroquial de formação cristã juvenil pós-crisma, que muito poderia obstar a futuras situações familiares irregulares; e para a “necessidade de conversão de pastores e fiéis” até que “todos possam dizer com verdade e alegria: a Igreja é a [sua] casa”. E sobre essa “debandada da juventude” perguntava o Papa se são os jovens que decidem abandonar a fé, se é a oferta que não interessa ou se esta não dá resposta às suas inquietações.

Se houve um tempo em que a Igreja se mobilizava para tentar oferecer às gerações mais jovens uma proposta formativa catequética fundada na Bíblia e nos grandes textos do magistério católico, hoje a mobilização passa, em grande parte, pela experiência. Foi por isso que se valorizou, na preparação da JMJ, a peregrinação dos símbolos, que se constituía como um acontecimento de per si – tal como a própria JMJ – e que depois tinha pouca ou nenhuma continuidade.

Os jovens têm hoje dificuldade “em participar em lógicas mais coletivas” e não só a nível religioso, observava o antropólogo Alfredo Teixeira em entrevista recente ao programa 7Margens da Antena 1. No entanto, a hierarquia católica parece ter baixado os braços em relação a propostas mais ousadas de formação sobre a Bíblia, sobre os documentos do II Concílio do Vaticano que, há seis décadas, iniciou a reforma da Igreja, ou sobre os textos do pensamento social católico. A JMJ não pode, não deve, servir de descanso, mas a multidão de jovens que acorreu a Lisboa parece ter sossegado os bispos, que provavelmente consideram que a debandada terminou. A ausência dos mais novos no dia a dia das igrejas não é isso que diz.

Leigos, clericalismo e bispos

Podem adivinhar-se outros tópicos, além dos referidos. Por exemplo, na estrutura interna da Igreja, o papel dos leigos – mulheres e homens. Apesar das sucessivas afirmações retóricas sobre a sua valorização, são muito poucas as tarefas a eles entregues. Um exemplo disto pode ser o que se passa nos meios de comunicação católicos, com a maior parte a serem dirigidos por padres, muitas vezes já assoberbados com dezenas de outros afazeres. Mas este caso é apenas um entre muitos que traduzem o clericalismo ainda dominante em muitas estruturas e cabeças do catolicismo português.

A comunicação, por si, é outra questão séria. São raras as dioceses em que se pode falar de um verdadeiro gabinete ou responsável de comunicação. Na maior parte dos casos, os bispos não querem alguém cuja tarefa seja a de os aconselhar ou ajudar na estratégia para essa área, mas apenas pessoas que cumpram tarefas como enviar comunicados ou notas de imprensa.

Ainda dentro da estrutura eclesiástica, pode referir-se os bispos que falta nomear em Portugal em várias dioceses, depois de outras terem estado a aguardar tempo demasiado: Guarda (há ano e meio), Portalegre e Castelo Branco (há meio ano) juntam-se a casos como Bragança e Setúbal que esperaram também mais de um ano por novo titular da diocese (e dentro em pouco juntar-se à o Algarve à lista). No caso da Guarda, Manuel Felício disse no início do ano que esperava ter sucessor até à Páscoa – ou seja, até 31 de Março. A data já lá vai.

Em Abril, perguntado sobre o tema, o presidente da CEP disse que o processo de nomeação “tem de ser revisto à luz da sinodalidade”. Não é por “falta de insistência” que os bispos em falta não são nomeados, disse na ocasião. “A Igreja em Portugal é bem o exemplo de como o processo tem de ser revisto”, afirmou na altura, para acrescentar: “O tema foi várias vezes mencionado no Sínodo” dos Bispos, em Outubro último, e é preciso que “a sinodalidade chegue à indigitação dos bispos”. Não querendo comentar eventuais queixas sobre a morosidade que o atual núncio do Vaticano em Lisboa possa ter introduzido no processo, José Ornelas acrescentava que, se é o caso de haver alguma resposta negativa a um convite, o processo volta à estaca zero. E o 7MARGENS sabe que em Portugal já houve vários casos de padres a recusar serem bispos, tal como no resto do mundo, em que o número rondará os 30% do total de convites.

Um sínodo pouco presente

O Dicastério dos Bispos é um dos organismos com os quais o episcopado português reunirá esta semana. Os restantes serão os dicastérios da Evangelização, Bispos, Clero, Doutrina da Fé, Culto Divino e Sacramentos, Cultura e Educação, Comunicação, Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, Causas dos Santos e ainda Leigos, Família e Vida. Outras entidades são a Secretaria-Geral do Sínodo, a Secretaria de Estado e o Tribunal da Assinatura Apostólica.

Apesar do encontro previsto, o Sínodo sobre a sinodalidade parece ser um tópico pouco presente. Em 2015, o Papa Francisco salientou que via “crescer a sinodalidade” na Igreja Católica em Portugal; nessa altura, várias dioceses tinham promovido sínodos diocesanos que, no entanto, não tiveram nem uma pequena parte do alcance nem da mobilização que teve a convocatória do Papa para o Sínodo sobre a sinodalidade – cuja segunda assembleia decorre em Outubro próximo.

Passados estes anos, não mais se ouviu falar das conclusões dos sínodos diocesanos, porque já outros “programas” se sobrepuseram. E apesar de reiteradas profissões de fé públicas no processo sinodal convocado pelo Papa, os bispos portugueses ainda não mostraram, no concreto, uma adesão clara ao debate sobre a sinodalidade. Não há iniciativa, cumprem-se os mínimos olímpicos apenas para marcar presença, a CEP faz de pombo correio divulgando as indicações de Roma e enviando para a Santa Sé os relatórios e as sínteses de grupos que participam. Mais: há padres de algumas dioceses que contam que os seus bispos afirmam publicamente a adesão ao processo, mas em privado não incentivam para que o sínodo funcione.

Um sinal dado precisamente neste domingo parece confirmar isso mesmo: a CEP anunciou, já a partir de Roma, que irá organizar um conjunto de catequeses a propósito do “Ano da Oração”, convocado pelo Papa para 2024 como preparação para o Jubileu do próximo ano. No próximo dia 28, o patriarca de Lisboa, Rui Valério, fará a primeira catequese, sobre o tema “Rezar hoje”. No entanto, acerca do Sínodo não houve, até hoje, nenhuma iniciativa semelhante por parte dos bispos.

Em 2007, como hoje?

Se recuarmos de novo a 2007, os bispos apresentaram nessa altura ao Vaticano a Igreja em Portugal como estando preocupada com a mutação cultural que a sociedade tem sofrido, traduzida em quebra estatística, e com a formação do clero e dos leigos católicos. O clero, já nessa altura diziam os bispos, devia dedicar-se mais à sua missão específica.

E se o quadro estatístico era preocupante, ele agravou-se: nas duas primeiras décadas deste século (entre 2000 e 2021), a quebra do número de padres é de cerca de 23% (passou de 4237 para 3267). Desde 2007, o número de casamentos civis ultrapassou o dos católicos e o matrimónio religioso não evita o divórcio.

Em 2015, Francisco dizia que a Igreja era na altura “escutada pela maioria da população e pelas instituições nacionais, embora nem sempre seja seguida a sua voz”; hoje, ela será menos escutada e ainda menos seguida; o Papa acrescentava que há padres “tentados pelo ativismo pastoral” que “não cultivam a oração e a profundidade espiritual”. E a verificável e constante quebra estatística (há cada vez menos pessoas nas missas, cada vez menos batizados ou matrimónios), não sendo o facto mais importante, é reveladora da perda de sentido e de poder simbólico de convocação de que o catolicismo é capaz.

O que fica dito não ignora o bem que se faz em vários domínios – ação social, catequese, mobilização de voluntários, dinamismos de movimentos ou congregações. Mas, para que uma semana em Roma tenha resultado, é preciso debater tudo o que falta fazer, E isso é muito. Muito mais, aliás, do que os exemplos aqui registados. Perante um tal quadro, o Papa Bento XVI dizia já em 2007 que era preciso “mudar o estilo de vida de organização da comunidade eclesial portuguesa e a mentalidade dos seus membros”, de modo a “ter uma Igreja ao ritmo do Concílio Vaticano II”.

Quase duas décadas depois, o que foi feito para aí chegar? E daqui a vinte anos, de que terá valido a visita ad limina que se inicia nesta segunda-feira?

Texto redigido por António Marujo/jornal 7Margens, ao abrigo de uma parceria com a Fátima Missionária.