“A Etiópia manteve a sua independência durante pelo menos três mil anos. E podemos ver agora mesmo como a cultura, a religião e a economia são originais. A própria estrutura económica é, em geral, muito autóctone. Quando se visita a Etiópia, as coisas podem até ser um pouco estranhas. Se formos a outros países africanos, vemos que falam muitas vezes a mesma língua dos vizinhos. Pode ser uma região de língua portuguesa, uma região de língua francesa ou uma região de língua inglesa. Mas na Etiópia, apesar da diversidade, à medida que se cruzam as fronteiras locais, acaba-se por conhecer uma cultura única. Pode ser a cultura Amhara, pode ser a cultura Oromo, pode ser a cultura Afar, todas com a sua língua, modo de vida e estrutura económica únicos”, explica Worku Belachew, diretor do jornal Ethiopian Herald, um diário em língua inglesa publicado em Adis Abeba.

Mesmo as duas tentativas de invasão italiana (1894-1896 e 1936-1941) não acabaram com a tradição de independência da Etiópia, realça o jornalista, que é formado em Literatura e em História Africana. Nem sequer os cinco anos de ocupação a coincidir praticamente com a Segunda Guerra Mundial fizeram dos etíopes um povo colonizado: “Na Etiópia, a herança italiana não existe. Porque não há descendentes de pessoas que falassem efetivamente italiano. Existem apenas algumas, poucas, infraestruturas que foram construídas durante o tempo dos italianos, para a instalação dos italianos durante os cinco anos de ocupação de Adis Abeba e de algumas outras cidades. Porque a Etiópia, durante os cinco anos de ocupação, defendeu a sua soberania. Não aceitámos a administração colonial como uma administração melhor do que a tradicional ou como uma alternativa. Foi um período de guerra justa, tanto de desobediência interna como de guerra. Por isso, não se pode pegar em qualquer herança que tenha sido deixada durante o período italiano. Foi curto e muito combatido”.

Convidado a explicar a força da nação etíope e a tradição multimilenar de Estado, Worku Belachew não hesita em destacar o papel da religião: “A ortodoxia cristã é muito importante e tem raízes muito antigas, pois desde a antiguidade que a Etiópia praticava o judaísmo. Aliás, o judaísmo é realmente observável na Etiópia mesmo atualmente. Diz a lenda que o rei Salomão enviou o seu filho Menelik I, juntamente com outros israelitas, para junto de sua mãe. Desde então, existe um povoamento antigo de judeus, aos quais agora se chama Falashas. São antepassados dos judeus etíopes que estão atualmente em Israel. O judaísmo estava lá e, no século IV, a Etiópia abraçou oficialmente o cristianismo”.

Só a Arménia pode reivindicar uma conversão enquanto país mais antiga do que a da Etiópia, mas estamos a falar a nível oficial, a nível de um monarca, no caso Ezama, de Axum, reino que se estendia das montanhas até ao Mar Vermelho. “Esta data do século IV é simbólica, e na realidade significa que a Etiópia já seguia o cristianismo desde o tempo de Jesus, mas só então se tornou oficial. Foi quando o monarca aceitou o Cristianismo que a Etiópia se tornou cristã, mas já antes disso era-o a nível do povo”, sublinha Worku Belachew, durante uma conversa em Astana, capital do Cazaquistão, onde participava numa conferência internacional.

Hoje em dia, dois terços dos 120 milhões de etíopes são cristãos, confirmando a ideia tradicional de um país cristão rodeado por países muçulmanos. Portugal, na sua expansão imperial, procurou muito o chamado Reino do Prestes João, um aliado cristão para lá das terras do islão, e de certa forma conseguiu-o na Etiópia. O jornalista conta que há memória desse contacto com os portugueses, iniciado no século XVI: “Nos nossos livros de História diz-se que o filho de Vasco da Gama, Cristóvão da Gama, veio apoiar o rei etíope. Os portugueses lutaram ao lado da Etiópia contra os muçulmanos durante o período otomano. Na escola, quando estava no 7.º e 8.º ano, essa aliança estava incluída no nosso currículo. Por isso, lembro-me da lição que aprendemos sobre Cristóvão da Gama e da guerra que foi travada. Foi uma guerra decisiva e importante nessa altura para a nossa independência”.

Há um momento trágico de rutura na história da Etiópia, quando em 1974 o imperador Haile Selassie foi derrubado, e com ele acabou a monarquia. Worku Belachew põe responsabilidades no próprio monarca pela situação, mas sobretudo aponta o dedo aos novos governantes, que puseram em causa os alicerces da nação: “O imperador não preparou a transferência de poder pacificamente e isso trouxe sofrimento para os etíopes, pois o fim da monarquia foi trágico. O novo regime comunista, de Mengistu, primeiro destruiu os três mil anos de história, depois fez o povo etíope perder a parte mais instruída da sociedade, a elite da sociedade. Muitas pessoas foram mortas pela junta militar. Mengistu acabou por fazer todo o tipo de horrores à Etiópia. Não há coisas boas que as pessoas falem hoje sobre Mengistu, que governou durante 17 anos. Não estou a dizer que tudo o que ele fez foi errado e mau, mas as coisas más superam as boas. Além disso, foi derrotado pelas forças guerrilheiras lideradas pelo TPLF. Na verdade, as forças da TPLF trouxeram mais 30 anos de tirania. Por isso, as origens de certos problemas de hoje podem ser muito diversas. Mas penso que se Haile Selassie tivesse transferido o seu poder pacificamente, antes da junta militar, o chamado Derg, atuar, e posto os assuntos da governação em ordem, a história recente da Etiópia poderia ter sido diferente”.

Após a queda do regime liderado por Mengistu em 1991, foi realizado um referendo de autodeterminação e a Etiópia perdeu a Eritreia, que se tornou independente em 1993. Desde então a Etiópia, com capital em Adis Abeba, sede da União Africana, é um país sem litoral, o que prejudica muito o desenvolvimento nacional, como explica o diretor do Ethiopian Herald: “Quando um país com mais de 120 milhões de habitantes fica sem acesso ao mar, não só a economia, mas também a paz e a segurança tornam-se muito vulneráveis. Porque tudo o que fazemos passa agora por outros países, e é afetado pela vigilância de terceiros, certo? Importamos e exportamos, como todos os países. Importamos e exportamos não só mercadorias, mas também produtos manufaturados e produtos alimentares. Por vezes, também se pode importar e exportar armamento. Por isso, é muito difícil para a economia neste momento contrariar esta falta de acesso ao mar. E também, neste momento, as nossas importações e exportações dependem muito dos portos no Mar Vermelho. Dependemos de Djibuti, de Port Sudão, de Berbera, na Somália, e por aí fora. Mas, de um modo geral, nos últimos anos dependemos de Djibuti, porque não estávamos a fazer negócios com a Eritreia, porque não utilizávamos o porto de Assab. Além disso, o porto de Berbera ainda não estava desenvolvido, por isso não o utilizámos e Port Sudão fica muito longe. Na verdade, há uma perspetiva de utilizar Port Sudão e o porto de Mombaça, no Quénia, mas só agora é que é possível”.

Worku Belachew, preocupado com os separatismos que assolam a antiga Abissínia (primeiro no Tigray e agora na região Ahmara), diz não entender também a hostilidade do Egito, que não tem fronteiras comuns, mas ao qual a Etiópia está ligada pelo Nilo, pois se o Nilo Branco nasce no Lago Vitória, no Uganda, é o Nilo Azul, que desce das montanhas etíopes, o afluente que traz a maior quantidade de água.

“O povo etíope, se me perguntar agora pelas vozes populares, pela opinião pública na Etiópia, as pessoas não desenvolveram uma hostilidade para com o Egito. Porque se virmos os ortodoxos etíopes, há um santo que é muito venerado e celebrado na Etiópia que é egípcio. Portanto, estas relações entre os cristãos etíopes e a minoria cristã copta egípcia acabaram por aproximar a Etiópia e o Egito ao longo dos tempos. A Etiópia recebia até há pouco tempo os seus bispos do Egito. Por isso, o Egito ocupa um lugar único entre os etíopes. O problema com o Egito é, em primeiro lugar, a nível político. A liderança política no Egito, a comunidade académica no Egito, agora distorcem a história e factos científicos. Por isso, dizem às pessoas que a Etiópia está a reter o Nilo, mas a Etiópia nunca reteve o Nilo e não o vai fazer. O Egito não deve temer. Há uma nova barragem, mas o Nilo é um rio enorme, não se pode detê-lo, muito menos a Etiópia. O que estamos a fazer agora é apenas produzir energia hidroelétrica. Portanto, faz-se girar a turbina com a água e o rio segue o seu curso, mas o que estão agora a contar às pessoas é uma versão distorcida da história”, argumenta o jornalista e historiador, que acrescenta que o país quer desenvolver-se mais, aproveitar que tem terras férteis, para nunca mais se repetirem as terríveis fomes dos anos 1980.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN