André aterrou em terras africanas com a organização Leigos para o Desenvolvimento, e após um ano de experiência missionária em São Tomé e Príncipe, chegou a Moçambique. Joana alcançou pela primeira vez Moçambique pela mão dos Missionários da Consolata, e mais tarde, em colaboração com a Fundação Fé e Cooperação, instalou-se no Niassa. Ele é enfermeiro, escuteiro, fotógrafo por paixão e natural de Pombal. Ela é educadora de infância, trabalhou nos últimos anos como gestora de projetos na área de cooperação para o desenvolvimento, e é natural de Sintra.

O Niassa foi a província onde se conheceram, que os acolheu durante vários anos e que lhes deixa memórias felizes, como um lugar de vida pacífica, tranquila e conectada com a natureza. Os dois casaram em Moçambique, para onde a missão os levou inicialmente, de forma individual. O país agarrou-os através das suas pessoas e lá acabaram por ficar a trabalhar e a viver cerca de cinco anos, na remota província do Niassa. Desafios laborais levaram depois André a mobilizar-se para Nampula, enquanto Joana se mantinha em Lichinga. Apesar de serem províncias vizinhas, estas duas cidades estão separadas por quase 700 quilómetros de estrada.

Os anos sucederam-se e o casal, fruto do tamanho acolhimento e da felicidade que desfrutava em Moçambique, continuava a pensar: “É só mais um ano”. Acreditavam estar então muito confortáveis. Até demasiado. Num momento de reflexão compreenderam que estavam tão confortáveis que replicavam um erro: não explorar muito Moçambique, nem os países vizinhos, algo que desejavam. Ambicionavam contrariar as rotinas e os facilitismos em que tantas vezes se cai no dia-a-dia, quando se arranjam todos os motivos para não sair de casa, para não conhecer mais, para não conhecer melhor a história e a cultura da cidade, do país, do planeta em que se vive.

Porém, havia um sentimento crescente que aos poucos ia tomando conta da vida do casal e que se resume numa palavra tipicamente portuguesa – ‘Saudade’ – que era cada vez mais impossível de calar ou sequer de abafar. Começava a ser mais forte do que aquilo que os mantinha entre o Rovuma e Maputo, embora adorassem os seus trabalhos e o estilo de vida tranquilo.

Foi neste contexto que um dia André, com a sua mente inquieta, reparou numa Toyota Hiace para venda que lhe captou o olhar. Bastou a entrada de Joana no carro para que André a desafiasse: “E se comprássemos um ‘chapa’, fizéssemos uma ‘campervan’ e fôssemos para Portugal de carro?” As ideias nunca mais pararam de fervilhar. A decisão de regressar a Portugal já estava praticamente tomada. A ideia de regressar de carro surgia naquele momento. Menos de uma hora depois, da boca de Joana já só saía o seu habitual: “Porque não?” Não foi aquele o carro que o casal comprou, mas a ideia de ter uma Toyota Hiace e de a transformar num ‘chapa’, nome dado ao transporte de passageiros coletivos em Moçambique, já não arredava pé. Fazia ainda mais sentido para o casal, porque aquele era o veículo que tantos países africanos usam para o transporte de passageiros e que depois batizam a seu belo prazer como ‘Candongueiro’, em Angola, ‘Matatu’, no Quénia, ‘Dala-dala’, na Tanzânia, e ‘Toca-toca’, na Guiné-Bissau, e tantos outros nomes.

O ‘chapa’ chegou do Japão, como a maioria dos carros em segunda mão comercializados na costa Este africana, e tornou-se na ‘Caracunda’ – é assim que os trabalhadores de origem asiática dos stands de automóveis em Maputo se referem aos carros com teto alto, enquanto tentam chamar-lhes corcundas no seu português acabado de aprender. Em vez de corcunda, sai-lhes um ‘caracunda’. Depois da chegada da ‘Caracunda’ ao porto de Maputo, foi já por estrada que percorreram os 2800 quilómetros entre a capital moçambicana e a capital da província do Niassa. Sem que o casal se apercebesse, a viagem já estava a começar. Em Lichinga, o casal transformou o ‘chapa’ em ‘campervan’ e legalizou o veículo como autocaravana. De repente, a ‘Caracunda’ passava assim a ser uma casa à medida, feita com materiais existentes localmente e com alguns ‘upgrades’ específicos comprados na vizinha África do Sul. Depois de 75 000 quilómetros, 29 países africanos e praticamente um ano e dez meses na estrada, percorridos entre julho de 2022 e o passado mês de fevereiro, Joana e André fazem um relato da sua viagem à FÁTIMA MISSIONÁRIA.

“Confiar é a palavra de ordem”
Os maiores desafios vieram, até com uma certa naturalidade, acompanhados de bênçãos posteriores. Estar numa situação que não se controla, e até de uma certa vulnerabilidade, a depender de desconhecidos, pode ser assustador. Ainda assim, escolhemos confiar. Escolhemos para o dia-a-dia um mote que temos para a vida, baseado num escrito do famoso poeta e escritor moçambicano Mia Couto, que nos sugere que devemos “Deixar Deus acontecer”.

O que rapidamente aprendemos foi que, sempre que não o fazíamos, passávamos pelos momentos de maiores privações. Confiar é a palavra de ordem, pois o mundo tem muitas mais pessoas boas do que más, e a maioria de nós anda somente à procura de ser feliz, seja onde for. Numa viagem desta envergadura são muitos os momentos marcantes e sentimentais. Na maioria dos casos, estão invariavelmente ligados a pessoas, mas não só. Sempre desejámos que a nossa viagem fosse veículo para as coisas boas e positivas.

À descoberta de África
As boas notícias são mais do que muitas. Num mundo que descreve África como um todo, por vezes quase como um país, rude, grosseiro, corrupto e subdesenvolvido, nós vimos os cuidados que na Tanzânia se têm com as pessoas com necessidades educativas especiais, com a acessibilidade e as passadeiras.

Experienciámos o desenvolvimento do Ruanda, um país saído de um genocídio há 30 anos, mas que se está a reconstruir e que tem índices de corrupção baixíssimos. No meio das suas mil colinas, surge a limpa e cuidada capital Kigali, a cidade mais limpa onde alguma vez estivemos. O Ruanda não fica por aqui, pois foi o primeiro país do mundo a entregar unidades sanguíneas e medicamentos em hospitais rurais com recurso a drones. Além disso, o seu número de mulheres com assento parlamentar é superior a todos os parlamentos mundiais.

No Uganda vimos bananas aos milhões, a alegria do povo, e apreciámos a forma como usam a banana produzida localmente para um conjunto de produtos de utilização diária. A simplicidade da vida do Burundi, a beleza natural da Zâmbia, o acolhimento dos zimbabueanos e a história guardada dentro de muralhas milenares no Zimbabué impressionou-nos.

Percebemos que na África do Sul cabe um continente inteiro e que a diversidade étnica se traduz em 11 línguas oficiais que convivem e cuidam de milhares de espécies de animais selvagens. O silêncio do deserto do Namibe fez estremecer o coração. A sua beleza estende-se até à África do Sul, atravessando a Namíbia até ao sul de Angola. Os elefantes no Botswana têm tudo de incrível, e os povos do Kalahari são mesmo do início do mundo. Descobrimos que a simpatia se encontra aos milhares nos países que mais sofrem com conflitos armados como a República Democrática do Congo.

Percebemos em vários países que as migrações estão por todo o continente e que os rios são fronteiras mais vezes do que deveriam. Observámos que os nigerianos estão em todo o lado, mas nem por isso a Nigéria está menos povoada. Em zonas menos recomendáveis, fomos cuidados e acolhidos como se família fôssemos. A nossa segurança nunca foi menos importante do que a de quem nos abriu a porta.

“Como se digere tanto bem?”
Lembramo-nos todos os dias da simplicidade com que contactámos. Vivemos muitas vezes moldados por normas sociais que efetivamente não são as nossas. Lembramo-nos todos os dias de que corra para onde correr a vida, somos nós os principais impulsionadores e decisores do estilo de vida que queremos viver e da nossa forma de ver e estar no mundo que tem tantos contextos.

Agora, regressados ao país que nos viu nascer, entre família e amigos, os desafios reinventam-se. Como voltar a fazer parte? O que fazer? Onde viver? Como se digere tanto bem recebido? Tudo isto, sabendo que ainda temos tanto para partilhar através das redes sociais, de um livro, ou de uma exposição. A resposta é mais fácil de dizer do que de colocar em prática, basta “Deixar Deus acontecer”.

Texto e foto: André Patrício e Joana Peixoto