Visto da província de Idlib, último bastião dos rebeldes sírios, o acolhimento caloroso em meados de maio dado pela Liga Árabe a Bachar Al-Assad significa tudo menos o regresso à normalidade. É verdade que o regime de Damasco, após 12 anos de guerra civil, controla de novo a maioria do território e o que se passou na cimeira de Jidá, na Arábia Saudita, foi um reconhecimento dessa vitória do campo governamental e daí a vontade de normalização de relações por parte dos outros países árabes, muitos dos quais foram críticos de Al-Assad e financiaram e armaram grupos rebeldes, alguns laicos e moderados, mas na sua maioria extremistas islâmicos de vários graus. Não por acaso, as minorias, como foi o caso dos cristãos, optaram por pedir proteção ao regime, mesmo conhecendo os seus defeitos.

Sarmada é a primeira cidade síria que encontra quem vem da Turquia pela fronteira de Bab Alhawa, controlada pelos rebeldes, que aí içaram a sua versão da bandeira nacional. A estrada leva a Idlib e noutros tempos também ligava a província turca de Hatay com Alepo, a segunda maior cidade síria. O casario de Sarmada confunde-se com as montanhas rochosas brancas por onde se espalha e só o chamar para a oração do início da tarde pelo muezzin quebra o silêncio numa cidade de ruas desertas de momento por causa do calor. Mas de repente um carro cheio de balões cor-de-rosa buzina ritmicamente até abrandar junto a uma rotunda com um monumento no centro e dele sair um casal de noivos e o fotógrafo. Vários carros também engalanados com balões chegam de seguida, todos convidados para um casamento que é sinal de que a vida não para, mesmo que a paz esteja longe de garantida.

Na província de Idlib, que passou numa década de um para cinco milhões de habitantes por causa dos deslocados internos, os combates só pararam porque parece haver uma trégua informal entre rebeldes e governo depois dos sismos de 6 de fevereiro no Norte da Síria e Sul da Turquia. Cerca de dez mil sírios terão morrido (e 50 mil turcos) e é impossível calcular quantos perderam a casa, pois para muitos aqui casa é uma tenda velha onde se amontoam várias gerações da mesma família. Também há uma espécie de trégua aqui entre a Turquia, que apoia alguns grupos rebeldes, e a Rússia, cujas tropas combatem por Al-Assad. Esta tem sido uma guerra civil cheia de intervenções estrangeiras de todo o género, desde americanos e seus aliados europeus, na hora de atacar o ISIS, o mais extremista dos grupos rebeldes, ao Irão, que ajuda o regime, passando por Israel, que destrói regularmente instalações iranianas em território sírio, consideradas uma ameaça. Para a Turquia, que de início apostou numa vitória rápida dos rebeldes, a prioridade acabou por ser impedir as milícias curdas sírias de instalar uma espécie de território independente e servirem de inspiração para os separatistas curdos turcos.

A guerra na Síria começou em 2011, depois do regime ter reprimido de forma violenta protestos a favor da democracia. Al-Assad, um oftalmologista que herdou a presidência do pai (um general que governou três décadas) e pertence à minoria alauita, viu o que aconteceu com outros líderes árabes em consequência da Primavera Árabe e decidiu não arriscar. E a verdade é que sobreviveu a várias ameaças, do terrorismo do ISIS ao separatismo curdo, da ameaça de intervenção dos ocidentais por causa do uso de armas químicas às incursões militares terrestres turcas e aéreas pelos israelitas, cada um destes países a partir de certo momento mais interessado na salvaguarda dos seus interesses nacionais do que no resultado final da guerra. A Al-Assad valeu muito, além da velha amizade familiar com os russos, o apoio militar do Irão, das milícias xiitas iraquianas e do Hezbollah libanês. Não esquecer que os alauitas são um ramo do islão xiita.

Assim, se o tunisino Ben Ali teve de fugir, o líbio Kadhafi foi morto, o egípcio Mubarak foi preso e o iemenita Ali Saleh se exilou, Al-Assad conseguiu ser o grande sobrevivente da Primavera Árabe, movimento transnacional de protesto contra as ditaduras que se iniciou na Tunísia em finais de 2010 depois de um jovem vendedor ambulante se ter imolado pelo fogo desesperado pela prepotência da polícia e sobretudo do Estado. Calcula-se que a guerra tenha nestes 12 anos causado a morte a mais de meio milhão de sírios, mais de metade deles civis. Há também sete milhões de deslocados de guerra, muitos deles na província de Idlib. E seis milhões de refugiados, sobretudo nos países vizinhos, com destaque para a Turquia, que acolhe metade deles.

Meshed Ruhin é uma cidade de casas de tijolos cinzentos construída de raiz pela AFAD, a agência de Proteção Civil da Turquia, na zona da província de Idlib controlada pelos rebeldes sírios seus aliados, nomeadamente o Exército Nacional Sírio mas não só. Tem escola, hospital, mesquita, um mercado. Em vez das muitas tendas, velhas e cheias de remendos, que se veem na estrada que sobe as colinas a partir de Sarmada, aqui há casas a sério para os deslocados de guerra. A tentativa é atingir a tal normalidade, mas é um objetivo difícil. A maior parte da população são famílias de combatentes rebeldes, que nunca poderão regressar às zonas controladas pelo regime de Damasco. Mesmo que apenas uma minoria seja do ISIS, o falhado Estado Islâmico que chegou a controlar partes enormes da Síria e até a cidade iraquiana de Mossul, é evidente o ultraconservadorismo que se nota no vestuário feminino (lenço a cobrir o cabelo sempre e muitos rostos ocultos pelo niqab). Se o Exército Sírio Livre controla a fronteira, a maior parte do território está nas mãos do Hayat Tahrir Al-Shams, que é só uma nova designação, mais tolerável para o Ocidente, para a Frente Al-Nusra, tantas vezes descrita como o ramo local da Al-Qaeda.

O tema dos refugiados sírios é muito sensível na vizinha Turquia. Depois de anos e anos de solidariedade com os fugitivos da guerra, o acolhimento aos refugiados deixou de ser consensual na classe política e o candidato derrotado na segunda volta das presidenciais turcas de maio, Kemal Kiliçdaroglu, chegou mesmo a prometer o reenvio dos sírios para o seu país. Mais pragmático do que o rival do Partido Republicano do Povo (CHP, social-democrata), o presidente reeleito, Recep Erdogan, do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP, islamo-conservador), não defende a expulsão dos refugiados, mas quer promover o seu regresso voluntário, nem que seja apenas à província de Idlib, onde a Turquia está a construir milhares de casas e a procurar que a zona se torne atraente para quem fugiu da guerra. A aridez da região é, porém, pouco apreciada, ficando muito aquém de cidades como Damasco e Alepo.

O regresso dos refugiados, também numerosos no Líbano, precisa de ser financiado pela comunidade internacional, que na última conferência de doadores, em meados de junho em Bruxelas, só se comprometeu com 5,6 mil milhões de dólares, metade do pedido pelas Nações Unidas. Ainda antes da cimeira, e num alerta desesperado, o Programa Alimentar Mundial tinha já anunciado que iria passar a ajudar 2,5 milhões de sírios em vez dos atuais cinco milhões por falta de verbas.

Mesmo na província de Idlib há, porém, algumas vozes otimistas. A trabalhar como tradutor de árabe para a AFAD em Meshed Ruhin está Ahmed, de 27 anos. Fugiu depois do início da guerra civil e conseguiu legalizar-se na Turquia, mas, acrescenta, “quando estava a viver em Ancara sentia a falta da família. E um dia decidi vir ter com ela. Pedi apoio às autoridades turcas para regressar. Conheço umas 100 pessoas que fizeram a mesma opção. A guerra não vai durar sempre”.

Para Ahmed não ser uma rara exceção, e mais famílias refugiadas na Turquia se instalarem aqui à espera da verdadeira paz, a educação das crianças tem de estar garantida. E a AFAD percebeu bem isso ao construir uma escola de dois pisos, cujo diretor é Mahmud Sagir Aslam. “Temos aqui mil alunos. Entre os seis e os 13 anos”, diz o professor Aslam. E mostra as salas decoradas com personagens de banda desenhada, e numa das paredes um desenho a afirmar a amizade da Turquia com a Síria Livre. “Não é uma escola religiosa. Ensinamos matemática, história, língua árabe, até inglês”, sublinha o professor. Mas rapazes e raparigas estão separados. Elas estudam de manhã, e eles de tarde. A AFAD, assim como a fundação turca IHH, que muito apoia estas pessoas, dizem que o papel da Turquia é a ajuda humanitária e que as regras de funcionamento da sociedade são definidas pelos próprios sírios, goste-se ou não. Ora, essas regras – mais conservadoras, religiosas ou seguindo um modelo laico, são tudo menos consensuais entre os sírios e por isso esta guerra civil ainda não terminou apesar da vitória anunciada de Al-Assad.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN