“Os rebeldes disseram-me para me juntar a eles, mas eu disse que não. Então eles mataram o meu irmão e eu mudei de ideia”. O testemunho de um ex-guerrilheiro, usado por um investigador norte-americano num trabalho sobre as crianças-soldado resume em poucas palavras a crueldade com que os grupos armados recrutam menores para darem o corpo às balas em conflitos, muitas vezes motivados por questões territoriais, de riqueza, poder ou apenas prestígio. Há relatos de meninos obrigados a enfrentar a guerra com apenas cinco anos e daqueles que têm sido resgatados da frente de combate com marcas psicológicas que dificilmente vão conseguir apagar para o resto da vida. Como se isso não bastasse, têm de enfrentar ainda o preconceito das comunidades e alguns das próprias famílias, que não os aceitam de volta, por os considerarem ‘criminosos’.

A 12 de fevereiro assinala-se mais um Dia Internacional Contra o Uso de Crianças-Soldado e apesar do trabalho que tem vindo a ser feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e por várias organizações não governamentais de defesa dos direitos das crianças, afigura-se distante a data em que o mundo possa celebrar a erradicação deste flagelo.

A lista de países responsáveis pelo recrutamento e uso de crianças como soldados, elaborada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos da América e atualizada em junho do ano passado, mostra que o fenómeno, em vez de diminuir, está a aumentar. Ao serem adicionados os Camarões, Líbia e Nigéria, a listagem passou a ter o maior número de sempre de nações acusadas do uso de crianças em conflitos, com várias reincidentes, como a República Democrática do Congo (RDC), Myanmar, Somália, Sudão do Sul, Sudão, Síria e Iémen.

O relatório documentou alguns desenvolvimentos encorajadores na RDC, onde não há casos de recrutamento de crianças pelas forças armadas nacionais há cinco anos (embora as forças governamentais continuem a colaborar com milícias que usam menores em conflitos); e no Sudão, onde o novo governo emitiu ordens de comando contra o recrutamento de crianças. Porém, e em sentido contrário, verificou que no Afeganistão as forças do governo continuam a recrutar crianças impunemente, que o uso de menores pelas forças do governo sírio é comum, sem nenhum esforço para responsabilizar os recrutadores, e que o Irão continua a forçar ou coagir crianças a lutar com milícias na Síria e a financiar milícias com crianças-soldado no Iraque e no Iémen.

Combatentes involuntários

Segundo dados do UNICEF, estima-se que atualmente existem cerca de 300 mil menores envolvidos em conflitos armados em todo o mundo: “São meninos e meninas que se veem obrigados a viver a guerra de verdade, convertendo-se em combatentes involuntários. Muitos vão para a frente de combate, outros são forçados a trabalhar como cozinheiros, mensageiros, [as meninas] como escravas sexuais, ou usados para ataques suicidas”.

Mas o que leva uma criança a trocar os livros por uma espingarda? Algumas são voluntárias, mas uma grande maioria é arrancada à força do seio familiar. Depois, são ‘moldadas’ pelos grupos armados, para que continuem sem perceber completamente os significados de “ausência” ou “morte” e mantenham uma certa inocência em relação ao perigo.

“Isto, combinado com problemas de pobreza, falta de acesso à educação ou capacitação, com discriminação e vulnerabilidade, transforma as crianças num alvo fácil para o recrutamento em grupos armados. As crianças órfãs, que vivem sós ou num ambiente familiar complicado, veem nisso uma solução para os seus problemas. E participar num grupo armado parece-lhes mais seguro do que fazer frente às dificuldades”, explica a organização não governamental (ONG) Humanium.

Durante o tempo que permanecem incorporados, os menores “são testemunhas e vítimas de atos terríveis de violência e são obrigados a exercê-los”. Para as meninas, é um duplo sofrimento. Grande parte delas são convertidas em escravas sexuais ou obrigadas a casar com membros do grupo armado para o qual foram recrutadas. Se têm o infortúnio de engravidar, ficam sujeitas a uma maior estigmatização social por terem um descendente de um militar do exército ou do grupo armado inimigo.

Risco de rejeição

Tudo isto torna evidente a dificuldade em resgatar, recuperar e reintegrar um jovem que passou os primeiros anos da sua infância ou adolescência a lidar com a violência, cara-a-cara e sem filtros. Os anos de desenvolvimento de personalidade são passados em contexto de isolamento e combate, sem acesso a uma escola. E quando há uma oportunidade de regressar à vida ‘civil’, nem sempre sabem o paradeiro da família, ou, se a reencontram, arriscam ser rejeitados, por medo de ataques ou de que não aceitem as meninas que voltam com filhos.

Apesar da complexidade da reabilitação, há anos que as agências das Nações Unidas e organizações humanitárias lutam para minimizar a repercussão dos conflitos armados na infância. Um dos marcos importantes nesta ‘batalha’ foi o estudo da ex-ministra da Educação de Moçambique, Graça Machel, encomendado pelo secretário–geral da ONU, em 1994. Dois anos depois, era publicado um relatório final com um apelo urgente: que se pusesse fim à “cínica exploração dos meninos e meninas como soldados”. Em 1998 foi fundada a Coligação para Acabar com a Utilização de Crianças-Soldado e em fevereiro de 2002 entrou em vigor um Protocolo Facultativo da Convenção sobre os Direitos da Criança, já ratificado por mais de 150 países.

Independentemente de todas estas medidas, vários grupos armados e também exércitos governamentais continuam a recrutar crianças-soldado, algumas delas com não mais de nove anos. Muitos outros menores vivem e crescem em zonas de guerra, e se não se unem a um grupo armado por sua iniciativa, as possibilidades de sobrevivência são muito escassas, lamentam os responsáveis do UNICEF. A agência tem ainda lançado diversos alertas para a necessidade urgente de financiamento dos programas de reintegração, para evitar a sua suspensão.

Perante este cenário, vale a pena recorrer de novo às palavras de Peter Warren Singer, cientista político e especialista em guerra do século XXI, na sua investigação sobre o fenómeno das crianças-soldado: “Um dos pecados originais da humanidade foi a sua incapacidade de viver em paz. Já houve uma firme convicção de que as crianças não têm lugar na guerra. Para torná-la realidade mais uma vez, precisamos apenas combinar a vontade daqueles que fazem o mal com a nossa própria vontade de fazer o bem”.