Rute Agulhas (à direita), coordenadora do Grupo Vita, e o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, José Ornelas, na abertura do congresso “Da reflexão à ação: o papel da Igreja Católica na prevenção e resposta à violência sexual”. Foto © Agência Ecclesia/MC

A perplexidade com a ausência da voz das vítimas no congresso do Grupo Vita sobre prevenção e resposta à violência sexual na Igreja Católica levou uma participante na iniciativa a confrontar os oradores com essa questão. Rute Agulhas, coordenadora do Vita, estrutura que acompanha as situações de violência sexual no contexto católico em Portugal, argumentou que não se pretendeu, neste congresso, expor publicamente as vítimas. Ao mesmo tempo, na iniciativa que decorreu quinta-feira, 27 de novembro, em Fátima, a psicóloga convidou a audiência a conhecer o “Sobre.Viver”, projeto lançado em outubro pelo Grupo Vita, que tem como propósito ajudar as vítimas de abusos sexuais na Igreja a recuperar a voz, a validar a sua dor e a reparar as mágoas existentes.

Em declarações à FÁTIMA MISSIONÁRIA, Rute Agulhas sublinhou que existe um acompanhamento das vítimas, mas sem a sua exposição pública. “Este congresso não é para expor as vítimas ou levá-las a um púlpito para falarem. As vítimas e os sobreviventes são escutados pelo Grupo Vita desde sempre. Iniciámos, inclusive, de forma muito recente, o projeto Sobre.Viver, que tem exatamente esse objetivo: dar cada vez mais voz às vítimas, não as expondo.” E acrescenta: “Vamos aproveitar aquilo que partilham connosco para delinearmos políticas preventivas e propostas de intervenção.”

Rute Agulhas afirma que nenhuma vítima demonstrou interesse em falar no congresso internacional “Da reflexão à ação: o papel da Igreja Católica na prevenção e resposta à violência sexual” organizado pelo Grupo Vita nesta quinta-feira, em Fátima, com diversas conferências de especialistas nacionais e internacionais. “Ninguém manifestou essa vontade. Estivemos com um grupo de vítimas na segunda-feira. Temos estado com elas online. Temos um pequeno grupo a funcionar que é confidencial.” De acordo com a coordenadora do Vita, entre os cerca de 300 participantes do congresso, estavam “algumas pessoas” da Coração Silenciado, associação que reúne vítimas e sobreviventes de abuso na Igreja Católica em Portugal, mas que quiseram participar na iniciativa “sob anonimato”.

A psicóloga explicou que é a partir do testemunho das vítimas que são desenhadas as medidas a tomar para combater os abusos. “Nós queremos aprender também com as vítimas e sobreviventes e, por isso, ouvimo-las e temos vindo a recolher os seus contributos e sugestões”, afirma. “Vamos desenhando as nossas medidas e as nossas estratégias, em função também daquilo que elas partilham connosco. Elas são ouvidas e tidas em conta, naturalmente, mas sem qualquer exposição pública.”

As histórias contadas pelas vítimas são usadas para combater este problema. “Nós não lemos relatos de vítimas nas conferências. Não temos páginas e páginas nos relatórios com relatos de vítimas, porque aqueles são os seus relatos e essa é a sua privacidade”, afirmou Rute Agulhas, numa declaração que se pode entender como crítica à forma como a Comissão Independente fez e apresentou o seu relatório.

A coordenadora do Grupo Vita afirmou ainda que o número de pedidos de compensações financeiras por abusos sexuais na Igreja Católica aumentou agora para 93, depois de, há duas semanas, a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) ter anunciado que havia 89 pedidos. Os últimos chegaram na semana passada, afirmou. As respetivas entrevistas, estão agora em processo de marcação, mesmo havendo duas pessoas que residem fora de Portugal, disse a psicóloga.

“Igreja não tem sido boa a lidar com o passado”

O presidente da Conferência Episcopal, José Ornelas: “As vítimas têm sido individualmente” contactadas. Foto © Agência Ecclesia/MC

Em outubro último, a Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores (CPPM) fez 13 recomendações à CEP para que esta melhore a forma como tem tratado a prevenção dos abusos, a reparação e acompanhamento das vítimas. Entre outras coisas, a CPPM queria que os bispos portugueses assegurem que “as vítimas [dos abusos sexuais e outros] e os sobreviventes tenham lugar na auditoria às políticas eclesiais definidas, bem como na definição e desenvolvimento dessas políticas”.

Falando aos jornalistas, o bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, presidente da CEP, disse que “as vítimas têm sido individualmente” contactadas. “Todo o trabalho nesta segunda parte do projeto que levamos há anos, tem sido feito com pessoas concretas. E neste diálogo surgem também sugestões” ao encontro das quais se tem procurado ir. Mas, admitiu, depois da sessão de abertura por ele presidida, é preciso ainda fazer melhor: “A experiência das pessoas ou dos sobreviventes que lutaram deve ser integrada, porque é fundamental e crucial para se encontrarem soluções para o presente e o futuro”, depois da ajuda que essas pessoas receberam para a sua sobrevivência.

Hans Zollner, padre jesuíta, director do Instituto de Antropologia da Pontifícia Universidade Gregoriana e especialista em prevenção de abusos sexuais, afirmou também aos jornalistas que não está a par da realidade portuguesa, mas destacou a importância do testemunho dos sobreviventes. “O envolvimento das vítimas tem de ocorrer com o máximo de confiança necessária, também porque muitas vítimas não querem ser conhecidas”, referiu, destacando ainda a importância de escutar as pessoas que sofreram abusos. “É importante ter em conta que elas não são apenas vítimas, são especialistas em certas áreas. Por exemplo, na forma como o abuso acontece, porque elas o viveram.”

Na intervenção que fez perante os participantes do congresso, Hans Zollner sublinhou que “a credibilidade da Igreja e o que está ligado a ela vem de viver o Evangelho da forma mais consistente possível”. E acrescentou: “Se todos fizermos o que podemos, dentro das nossas limitações, sem pretendermos a perfeição, o testemunho do Evangelho será mais credível. Cada um de nós tem um papel a desempenhar.”

Afirmando que “a nível global, a Igreja Católica fez muito em termos de medidas de proteção”, Zollner insistiu em que é preciso “confessar, arrepender-se e reparar” os erros do passado, com “justiça e misericórdia” para vítimas e acusados. A Igreja, admitiu, não tem sido boa “a lidar com o passado, com o mal feito às pessoas”, mas não precisa de fugir dos seus pecados e dos seus erros. “Deus prometeu perdão e reconciliação se confessarmos, nos arrependermos e repararmos.”

Referindo-se ao problema do mal, convidou à ação: “O mal existe sempre e existirá para sempre. Não vai desaparecer. Por isso, é melhor fazermos alguma coisa.”

“Não cometam os erros da Irlanda”

Hans Zollner: “As vítimas podem dizer qual é a prioridade”. Foto © Agência Ecclesia/MC

Uma das outras intervenções nas sessões plenárias foi protagonizada pela irlandesa Marie Keenan, autora de vários livros sobre abuso sexual de crianças na Igreja, criminóloga, psicoterapeuta e membro do Grupo Consultivo para a Eliminação da Violência Sexual nas escolas superiores da Irlanda.

⁠“É preciso ir para lá da lei, superar a lógica estritamente jurídica e reencontrar, na Doutrina Social da Igreja, o caminho para uma verdadeira justiça restaurativa centrada no cuidado, na cura e na responsabilidade”, afirmou. “Se queremos cura, temos de ir para lá do direito. A justiça restaurativa é coerente com a Doutrina Social da Igreja – dignidade, solidariedade, bem comum, responsabilidade”, insistiu. E, num alerta aos responsáveis portugueses, disse: “Não cometam os erros da Irlanda. Os problemas não desaparecem.”

Na conversa com os jornalistas, o padre Zollner advertiu que as vivências das vítimas podem ser usadas para delinear medidas preventivas. “Elas podem dizer qual é a prioridade ou não”, exemplificou, deixando depois um alerta: “O mais importante é também que elas não se sintam usadas apenas porque são vítimas.”

Os sobreviventes podem ajudar a Igreja a definir estratégias de combate aos abusos, considera Hans Zollner. “O que elas podem trazer para a Igreja é muito útil, não apenas para estabelecer regras e políticas, que é o primeiro passo. O que é mais necessário, e onde a voz das vítimas é igualmente essencial, é na concretização. Ouvir a voz delas, o que estão a sentir que faz falta, o que deve ser fortalecido.” Quanto aos católicos em geral, devem entender que “as vítimas não estão fora da Igreja, estão dentro, querem ter uma voz dentro, pelo menos algumas delas”.

No âmbito da prevenção dos abusos sexuais no seio da Igreja Católica, o padre Zollner pensa que deve ser feito um “grande esforço” na “seleção dos candidatos” para os seminários diocesanos ou para as congregações religiosas. “Há que haver critérios claros sobre a maturidade humana, sobre a capacidade relacional e a estabilidade emocional”, disse, sublinhando que “é igualmente importante” que a formação dos religiosos continue a acontecer após a ordenação. “Precisamos de investir no acompanhamento de religiosos nas suas vidas, evitar que eles se sintam sozinhos, vazios e sobrecarregados.”

Texto publicado no âmbito da parceria Fátima Missionária/7Margens