O tema foi escolhido por Francisco, o título também, e as primeiras ideias terão sido alinhavadas por ele nos últimos meses de vida. Mas Leão XIV não só aceitou esta herança como a fez sua. Por isso, na exortação apostólica Dilexi te (em português “Amei-te”) – publicada dia 9 de outubro e já disponível online na versão portuguesa – o que encontramos é a sua assinatura, por baixo de um convite e de um apelo a todos os católicos: “ler novamente o Evangelho” e “não esquecer os pobres”.
É o próprio Leão XIV que faz questão de o esclarecer logo na introdução do documento, que se estende ao longo de 121 pontos, organizados em cinco capítulos: “Em continuidade com a encíclica Dilexit nos, o Papa Francisco, nos últimos meses da sua vida, estava a preparar uma exortação apostólica sobre o cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres, intitulada Dilexi te, imaginando Cristo a dirigir-se a cada um deles dizendo: Tens pouca força, pouco poder, mas ‘Eu amei-te’ (Ap 3, 9)”.
E continua: “Sinto-me feliz ao assumi-lo como meu – acrescentando algumas reflexões – e ao apresentá-lo no início do meu pontificado, partilhando o desejo do meu amado predecessor de que todos os cristãos possam perceber a forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu chamamento a tornarmo-nos próximos dos pobres”. Até porque, justifica ainda o Papa Leão, também ele considera ser “necessário insistir neste caminho de santificação”.
Uma cultura de descarte “bem disfarçada”, mesmo entre “cristãos”
Certamente não por acaso, Leão XIV assinou este seu primeiro documento magisterial no passado dia 4 de outubro, data em que se assinalava a festa de São Francisco. Ele próprio recorda, na exortação, que foi por causa de um pedido para que não se esquecesse dos pobres que o anterior Papa escolheu o nome de Francisco, pois foi este santo que “há oito séculos provocou um renascimento evangélico nos cristãos e na sociedade do seu tempo”, ele que “anteriormente rico e presunçoso, renasceu a partir do impacto com a realidade daqueles que são expulsos da convivência”.
E ao unir nesta exortação a sua voz à do Papa Francisco (e à do santo de quem este tomou o nome), Leão XIV parece querer provocar um novo renascimento evangélico. “Estou convencido de que a opção preferencial pelos pobres gera uma renovação extraordinária tanto na Igreja como na sociedade, quando somos capazes de nos libertar da autorreferencialidade e conseguimos ouvir o seu clamor”, afirma.
E reconhecendo que “a condição dos pobres representa um grito que, na história da humanidade, interpela constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e económicos e, sobretudo, a Igreja”, o Papa expõe o facto de esse grito sair da boca de cada vez mais pessoas, sem que muitos, mesmo na Igreja, consigam escutá-lo.
Denunciando as “múltiplas formas de empobrecimento económico e social” a que assistimos no mundo de hoje (como as “mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência”, as “famílias que não conseguem chegar ao fim do mês”, ou os milhares de pessoas que “morrem por causas relacionadas com a desnutrição”), Leão XIV expõe o paradoxo do crescimento de “algumas elites ricas, que vivem numa bolha de condições demasiado confortáveis e luxuosas, quase num mundo à parte em relação às pessoas comuns”.
“Isto significa que persiste – por vezes bem disfarçada – uma cultura que descarta os outros sem sequer se aperceber, tolerando com indiferença que milhões de pessoas morram à fome ou sobrevivam em condições indignas do ser humano”, alerta o Papa. Uma cultura que aponta muitas vezes o dedo aos pobres como estando nessa situação “porque não obtiveram ‘méritos’, de acordo com a falsa visão da meritocracia, segundo a qual parece que só têm mérito aqueles que tiveram sucesso na vida.
Leão XIV vai mais longe e denuncia que “também os cristãos, em muitas ocasiões, se deixam contagiar por atitudes marcadas por ideologias mundanas ou por orientações políticas e económicas que levam a injustas generalizações e a conclusões enganadoras”. E que muitos cristãos têm “preconceitos” em relação aos pobres, sentindo-se “mais à vontade” sem eles. “Há quem continue a dizer: ‘O nosso dever é rezar e ensinar a verdadeira doutrina’. Mas, desvinculando este aspecto religioso da promoção integral, acrescentam que só o Governo deveria cuidar deles, ou que seria melhor deixá-los na miséria, e ensinar-lhes antes a trabalhar”, lamenta o Papa.
“Observar que o exercício da caridade é desprezado ou ridicularizado, como se fosse uma fixação somente de alguns e não o núcleo incandescente da missão eclesial, faz-me pensar que é preciso ler novamente o Evangelho, para não se correr o risco de o substituir pela mentalidade mundana. Se não quisermos sair da corrente viva da Igreja que brota do Evangelho e fecunda cada momento histórico, não podemos esquecer os pobres”, conclui Leão logo no ponto 15 da exortação.
As Escrituras e a tradição são claras, é preciso segui-las
Leão XIV percorre depois o Antigo e o Novo Testamento para demonstrar que “Deus escolhe os pobres” e que “Ele mesmo se fez pobre, nasceu segundo a carne como nós e reconhecemo-lo na pequenez de uma criança recostada numa manjedoura e na extrema humilhação da cruz, onde partilhou a nossa radical pobreza, que é a morte”.
Ao abrir os olhos aos cegos, curar os leprosos, anunciar-lhes a “boa nova”, dizer-lhes “Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6, 20), Cristo “mostra predileção” por eles. “E a Igreja, se deseja ser de Cristo, deve ser Igreja das Bem-aventuranças, Igreja que dá vez aos pequeninos e caminha pobre com os pobres, lugar onde os pobres têm um espaço privilegiado”, defende o Papa, que assume perguntar-se muitas vezes: “quando há tanta clareza nas Sagradas Escrituras a respeito dos pobres, por que razão muitos continuam a pensar que podem deixar de prestar atenção aos pobres”?
Para Leão XIV, “há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres”, e prova disso é também o testemunho deixado por inúmeros santos, beatos e missionários que, ao longo dos séculos, encarnaram a imagem de “uma Igreja pobre e para os pobres”. Além de Francisco de Assis e do seu gesto de abraçar um leproso, Leão XIV recorda a Madre Teresa de Calcutá, ícone universal da caridade dedicada aos moribundos da Índia “com uma ternura que era oração”, e ainda São Lourenço, São Justino, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo, o “seu” Santo Agostinho, que afirmava: “Aquele que diz amar a Deus e não se compadece dos necessitados, mente”.
Leão lembra ainda o trabalho dos Camilianos junto dos doentes, das congregações femininas em hospitais e casas de repouso, dos mosteiros beneditinos no acolhimento a viúvas, crianças abandonadas, peregrinos e mendigos, e dos Franciscanos, Dominicanos, Carmelitas e Agostinianos que iniciaram “uma revolução evangélica” através de um “estilo de vida simples e pobre”, juntamente com os Trinitários e Mercedários que, lutando pela libertação dos “cativos”, expressaram o amor de “um Deus que liberta não só da escravidão espiritual, mas também da opressão concreta”.
O pontífice recorda também o exemplo de São José de Calasanz, que fundou a primeira escola popular gratuita da Europa, ou das irmãs Ursulinas, que “criaram escolas nos pequenos vilarejos, nas zonas de periferia e nos bairros operários”, para destacar a importância da educação dos pobres, que “para a fé cristã, não é um favor, mas um dever”.
Exemplos que precisam de continuar a ser seguidos, inspirando novas formas de ação diante das pobrezas e escravidões no mundo de hoje: o tráfico de pessoas, o trabalho forçado, a exploração sexual, as diversas formas de dependência, e também o drama dos migrantes, ao qual Leão XIV dedica vários parágrafos desta primeira exortação apostólica.
Recordando a imagem do pequeno Alan Kurdi, o menino sírio de apenas três anos que o mundo inteiro viu deitado na areia de uma praia do Mediterrâneo, já sem vida, em 2015, o Papa lamenta que “infelizmente, à parte de alguma momentânea comoção, acontecimentos semelhantes estão a tornar-se cada vez mais irrelevantes, como se fossem notícias secundárias”.
Enquanto isso, a atividade da Igreja junto dos migrantes prossegue “e hoje esse serviço expressa-se em iniciativas como os centros de acolhimento para refugiados, as missões nas fronteiras, e os esforços de Caritas Internationalis e de outras instituições”, constata.
“A Igreja, como mãe, caminha com os que caminham. Onde o mundo vê ameaça, ela vê filhos; onde se erguem muros, ela constrói pontes. Pois sabe que o Evangelho só é crível quando se traduz em gestos de proximidade e de acolhimento; e que em cada migrante rejeitado, é o próprio Cristo que bate às portas da comunidade”, destaca o Papa, desafiando todos os cristãos a “ajudar os outros a verem no migrante e no refugiado não só um problema para lidar, mas um irmão e uma irmã a serem acolhidos, respeitados e amados”.
Um caminho a percorrer, mesmo correndo o risco de “parecer estúpidos”
Considerando que “ao longo dos séculos da história cristã, devemos igualmente reconhecer que a ajuda aos pobres e a luta pelos seus direitos não envolveu apenas indivíduos, algumas famílias, instituições ou comunidades religiosas”, o Papa recorda que “houve, e há, vários movimentos populares, constituídos por leigos e conduzidos por líderes populares, colocados muitas vezes sob suspeita e até perseguidos”, que desempenham um papel determinante e precisam de ser ouvidos.
“Também o contributo da Doutrina Social da Igreja tem em si esta raiz popular que não se pode esquecer: seria inimaginável a releitura da Revelação cristã nas modernas circunstâncias sociais, laborais, económicas e culturais sem leigos cristãos envolvidos com os desafios do seu tempo”, reconhece Leão XIV.
E defende que “a mudança de época que enfrentamos hoje torna ainda mais necessária a interação contínua entre batizados e Magistério, entre cidadãos e peritos, entre povo e instituições”. “Em particular – sublinha – é preciso reconhecer novamente que a realidade se vê melhor a partir das periferias e que os pobres são sujeitos de uma inteligência específica, indispensável à Igreja e à humanidade.”
O documento faz ainda referência às contribuições históricas dos Papas para o desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja desde Leão XIII – que inspirou a escolha do nome do atual Papa –, com a encíclica Rerum novarum (1891), a Bento XVI, passando por João XXIII, Paulo VI e João Paulo II, que reforçaram o compromisso da Igreja com os pobres, destacando a dimensão “cristocêntrica” da Doutrina Social e a defesa da dignidade humana e dos direitos sociais.
Leão XIV sabe que o caminho até aqui foi longo e muito há ainda por trilhar, especialmente numa época em que continua a vigorar a “ditadura de uma economia que mata”. Mas não tem dúvidas: “Mesmo correndo o risco de parecer ‘estúpidos’, é tarefa de todos os membros do Povo de Deus fazer ouvir, ainda que de maneiras diferentes, uma voz que desperte, denuncie e se exponha. As estruturas de injustiça devem ser reconhecidas e destruídas com a força do bem, através da mudança de mentalidades e também, com a ajuda da ciência e da técnica, através do desenvolvimento de políticas eficazes na transformação da sociedade.”
O texto cita ainda constituição pastoral Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, que sublinhou o “destino universal dos bens da terra e a função social da propriedade”. Leão XIV coloca-se em continuidade com este magistério, evocando ainda as Conferências do Episcopado Latino-Americano em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, que se realizaram nas últimas décadas.
“Eu mesmo, missionário no Peru durante tantos anos, devo muito a este caminho de discernimento eclesial, que o Papa Francisco com sabedoria soube unir ao de outras Igrejas particulares, especialmente do chamado Sul global”, assume, insistindo que “a caridade é uma força que muda a realidade, um autêntico poder histórico de transformação. Esta é a fonte da qual deve nutrir-se todo o compromisso para ‘resolver as causas estruturais da pobreza’ e para o fazer com urgência”.
“Não renunciemos à esmola”
Se por um lado o Papa reafirma que “o auxílio mais importante para uma pessoa pobre é ajudá-la a ter um bom trabalho, para que possa ter uma vida mais condizente com a sua dignidade, desenvolvendo as suas capacidades e oferecendo o seu esforço pessoal”, por outro aponta que “se ainda não existe essa possibilidade concreta, não devemos correr o risco de deixar uma pessoa abandonada à própria sorte, sem o indispensável para viver dignamente”.
Assim, nas últimas páginas do documento, Leão XIV detém-se sobre a importância da esmola, que “não só é raramente praticada, como às vezes é até desprezada”.
“Como cristãos, não renunciamos à esmola”, pede o Pontífice. “Um gesto que pode ser feito de várias maneiras, e podemos tentar fazer de forma mais eficaz, mas que deve ser feito. E será sempre melhor fazer alguma coisa do que não fazer nada. Em todo o caso, tocar-nos-á o coração. Não será a solução para a pobreza no mundo, que deve ser procurada com inteligência, tenacidade e compromisso social. Mas precisamos de praticar a esmola para tocar a carne sofredora dos pobres.”
O Papa salvaguarda que “a esmola não isenta as autoridades competentes das suas responsabilidades, nem elimina o empenho organizativo das instituições, muito menos substitui a legítima luta pela justiça”, mas convida a “parar e a olhar nos olhos a pessoa pobre, tocando-a e partilhando com ela algo do que se tem”.
Acima de tudo, é necessário que “todos nos deixemos evangelizar pelos pobres”, exorta o Papa. “O cristão não pode considerar os pobres apenas como um problema social: eles são uma questão familiar. Pertencem aos ‘nossos’”. E devem poder sentir que são para eles as palavras de Jesus que dão título à exortação apostólica: “Eu amei-te”.
Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.








