As imagens via satélite da NASA mostram uma certa diferença entre os dois países que partilham a Hispaniola: amarelo acastanhado maioritário do lado do Haiti, verde predominante no lado ocupado pela República Dominicana. No livro ‘Colapso’, o historiador americano Jareed Diamond explica que a diferença de paisagem tem de ver em parte com a maior aridez da metade ocidental da ilha, mas que foi a ação humana a principal responsável pela diferença. Nos tempos coloniais, o Haiti, conhecido como Saint Domingue, era uma das mais ricas colónias francesas, grande produtora de açúcar e de café. Já a parte oriental, colónia espanhola, era apenas mais uma porção de território de um império que ia da Califórnia à Terra do Fogo. Assim, enquanto uma era submetida a um esforço produtivo permanente, a outra vivia numa relativa calma, que poupava as florestas.
Hoje o contraste mantém-se, mas a prosperidade agora é da República Dominicana, cujas praias atraem os turistas do mundo inteiro, e tem regras para proteger a natureza. Pelo contrário, o Haiti, país mais pobre das Américas, ganhou uma imagem de violência que corresponde a uma história traumática, mas também a um presente de conflito permanente, onde vale tudo até no derrube de arvoredo, com as instituições do Estado a mostrarem-se fracas e os gangues criminosos a tentar ser os senhores do país. Pelo menos 1247 pessoas foram assassinadas e 710 ficaram feridas no Haiti, entre 1 de julho e 30 de setembro de 2025, devido à violência dos gangues, grupos de autodefesa e intervenientes não organizados, revelou um relatório das Nações Unidas. Cerca de 30 por cento das vítimas foram causadas por gangues armados, nove por cento por grupos de autodefesa e membros da população, e 61 por cento por operações das forças de segurança contra elementos dos bandos criminosos, acrescenta o documento divulgado em meados de novembro. Perto de milhão e meio de pessoas são deslocados internos, uns dez a 15 por cento dos 11 milhões de habitantes de um país que com 28000 quilómetros quadrados é do tamanho do Alentejo.
Em 1804, o Haiti proclamou a sua independência, sob a presidência de Jean Jacques Dessalines. Foi o segundo país do continente americano a libertar-se depois dos Estados Unidos da América (EUA). Mas a grande violência da luta independentista, com os escravos primeiro a lutarem contra os franceses, depois os brancos a serem massacrados e finalmente negros e mulatos a lutarem entre si, prenunciou toda uma era de dificuldades que foram agravadas pela indemnização exigida por Paris para reconhecer o novo país. Assinado em 1825, o tratado exigia uma compensação pelas perdas dos franceses, e foi pago totalmente em 1883. Outros cálculos, porém, estimam que só em 1947 a dívida foi saldada de vez, o que leva muita gente a denunciar século e meio de recursos a serem enviados para a Europa em vez de investidos no país.
A violência da revolta dos escravos haitianos no início do século XIX assustou as Américas, e as notícias do massacre da população branca impressionou os EUA e o Brasil (ainda colónia portuguesa nessa época), atrasando a abolição da escravatura nesses dois países. Mas nesses anos iniciais, com o prestígio de ser a primeira nação negra a conquistar a independência, o Haiti chegou também a ser uma fonte de inspiração para outros líderes rebeldes do continente, como o venezuelano Simon Bolívar. Considerado o libertador de boa parte da América do Sul, Bolívar recebeu apoio militar de Alexandre Pétion, presidente da república que existia então no sul do Haiti (no norte, criou-se uma efémera monarquia) a troco do compromisso de eliminar a escravatura nas colónias de língua espanhola.
A história do Haiti divide-se assim entre a imagem gloriosa de uma rebelião republicana bem sucedida, que acabou com a colonização e a escravatura e até apoiou a libertação da América Latina, e lutas internas que conduzem regularmente ao caos político e até a intervenção estrangeira, como aconteceu duas vezes no século XX por ação dos EUA. Um raro período de estabilidade foi a ditadura dos Duvalier, que durou até 1986, mas marcada ao longo de três décadas por uma repressão brutal de qualquer oposição, através da milícia dos Tonton Macoutes, ainda hoje nome que relembra horrores.
A eleição em 1990 do antigo padre Jean-Bertrand Aristide, com preocupações de justiça social, trouxe esperança, mas por culpa dos militares que o derrubaram, e também da deriva autoritária do próprio quando foi reposto no poder em 1994 pelos americanos, acabou por fracassar.
O sismo de 2010, que matou centenas de milhares de haitianos, e deixou grande parte do país destruído
(a cúpula caída do palácio presidencial em Porto Príncipe ficou como símbolo de mais uma desgraça), levou a uma intervenção da ONU, que, porém, não trouxe os resultados desejados na reconstrução. Até 2021, sucessivos presidentes foram incapazes de governar bem e o assassínio de Jovenel Moise lançou o país ainda mais no caos.
Desde abril de 2024, o poder político é assumido pelo Conselho de Transição Presidencial, um órgão coletivo, que governa depois de o ex-primeiro-ministro interino Ariel Henry ter sido impedido de regressar a Porto Príncipe pelos gangues que ocuparam o aeroporto, o mais forte dos quais é o Viv Ansanm (Viver Juntos, no crioulo haitiano), liderado por Jimmy Chérizier, um antigo polícia. A comunidade internacional tem procurado apoiar as autoridades no combate aos gangues, que recrutam adolescentes e até crianças, e um sinal de otimismo chegou a 30 de setembro quando o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução para a criação de uma Missão de Supressão dos Gangues, com 5500 elementos. Os 800 polícias quenianos já em serviço no quadro das ONU não são, pois, suficientes, e terá de haver muito esforço para preencher o contingente previsto. Em paralelo, terá de haver mais vigilância das zonas marítimas para impedir o tráfico de armas para o Haiti.
A Igreja Católica, que é claramente maioritária apesar da popularidade de cultos tradicionais africanos, tem feito fortes apelos à unidade dos haitianos, com a comissão episcopal a falar da necessidade de “travar a descida ao inferno”. Desde 2014, por decisão do Papa Francisco, o Haiti tem um cardeal, Chibly Langlois. E desde a eleição de Leão XIV este ano, os haitianos celebram também a ligação do novo Papa ao país, pois vários genealogistas identificaram documentos que apontam para o avô materno de Robert Prevost ter nascido no Haiti, numa família com ligações a Nova Orleães, no sul dos EUA.
A emigração, sobretudo para os EUA, tem sido a solução tradicional para os haitianos cansados do ciclo de violência, mas a sua saída faz o país perder muita gente qualificada, o que dificulta o desenvolvimento. No Índice de Desenvolvimento Humano elaborado pela ONU, o Haiti surge na posição 166. A vizinha República Dominicana está na 89.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN








