Os 230 milhões de nigerianos dividem-se quase ao meio entre muçulmanos e cristãos, e os sucessivos presidentes desde a independência nos anos 1960 têm sido tanto seguidores do islão como fiéis do cristianismo, refletindo assim não só o equilíbrio demográfico como o objetivo de separação entre Estado e religião que prevê a Constituição desta antiga colónia britânica. Mas a relação entre os seguidores das duas grandes religiões monoteístas não tem sido pacífica e nos últimos anos acumulam-se os casos de violência contra os cristãos, sejam eles católicos, anglicanos ou membros de outras igrejas protestantes. Em meados de junho, na cidade de Yelwata, no Estado de Benue, cerca de duas centenas de pessoas foram massacradas durante um ataque noturno, em mais uma situação de grande violência que originou mesmo uma reação do Papa durante a missa dominical do dia 15 de junho no Vaticano. “Um terrível massacre no qual cerca de 200 pessoas foram mortas, com extrema crueldade, a maioria das quais eram deslocados internos, acolhidos pela missão católica local”, disse Leão XIV.  “Rezo para que a segurança, a justiça e a paz prevaleçam na Nigéria, país amado e tão afetado por diversas formas de violência e rezo, de modo particular, pelas comunidades cristãs rurais do Estado de Benue, que têm sido incessantemente vítimas de violência”, acrescentou o chefe da Igreja Católica.

Ainda como agostiniano americano, Robert Francis Prevost, o atual Papa, que sucedeu em maio a Francisco, visitou nove vezes a Nigéria, pelo que conhece bem o país, a complexa relação entre islão e cristianismo, e a situação da minoria católica. Não se sabe se a Nigéria estará entre as prioridades das visitas ao estrangeiro do novo Papa, mas caso seja incluída será uma novidade desde João Paulo II, que por duas vezes a incluiu em périplos por África. Ao contrário do Papa polaco, nem o alemão Bento XVI nem o argentino Francisco fizeram visitas papais ao país que tem desde 1991 Abuja como capital (mesmo que Lagos continue a capital económica).

O recente massacre aconteceu no Estado de Benue, que fica no centro do país, na zona de transição entre um Sul de maioria cristã e um Norte predominantemente islamizado, e resulta da soma de rivalidades religiosas e disputa por terras. As etnias que criam gado, muitas vezes descritas como pastores, são em geral muçulmanas, enquanto as que cultivam a terra, agricultores, tendem a ser cristãos. A competição pela terra e pelo acesso à água agudiza as relações, e tem vindo a piorar à medida que a explosão demográfica se faz sentir, pois é importante relembrar que desde 2000 o número de nigerianos duplicou. E as previsões para 2050 dão a população a ultrapassar a fasquia dos 400 milhões de habitantes, o que fará a Nigéria passar de sétimo país mais populoso do mundo para terceiro, só atrás da Índia e da China.

Ao longo dos meses, ataques a comunidades de agricultores cristãos têm vindo a acontecer, ainda que não com os números impressionantes acontecidos agora em Yelwata. Em maio, por exemplo, foi noticiado a morte de seis cristãos em duas aldeias cristãs do Estado Plateau, também na região central da Nigéria. Os atacantes, tal como no recente caso no Estado de Benue, terão sido milícias saídas da população fulani, um grupo étnico que congrega uns 15 milhões de pessoas na Nigéria, mas cerca de 40 milhões na África Ocidental em geral. Na Nigéria, os fulani são por vezes agregados com os hausa, com quem partilham características culturais, e nesse caso o grupo hausa-fulani representaria cerca de um quarto dos nigerianos, povo que é constituído por cerca de 250 etnias. Yorubas e igbos são as duas etnias que vêm a seguir em termos de elementos, e ambas são de maioria cristã.

Além deste choque entre muçulmanos e cristãos na faixa central da Nigéria, muito provocado pela escassez de recursos mas acentuado pelos discursos de ódio religioso, há uma outra fonte de extremismo contra os cristãos, neste caso no Norte, com evidentes características jihadistas, sendo o Boko Haram o grupo terrorista mais célebre, pelo menos desde que em 2014 sequestrou de uma escola em Chibok, no Estado de Borno, 276 raparigas com idades entre os 14 e os 19 anos. A grande maioria eram cristãs.

Em 2024, passada uma década sobre o ataque à escola em Chibok, continuavam por libertar 82 das raparigas, entretanto já adultas. Ao longo dos anos, as autoridades nigerianas, umas vezes por negociação outras por via de ações armadas, foram conseguindo resgatar muitas das raparigas. Foi então descoberto que tinham sido forçadas a casar com os terroristas e houve mesmo algumas que depois de libertadas insistiram em manter-se ligadas ao Boko Haram, pois tinham filhos com os sequestradores. Os esforços para recuperar as meninas raptadas continuam até hoje, e o governador do Estado de Borno, Babagana Zulum, um muçulmano, tem mantido o envolvimento, o que já lhe valeu elogios dos cristãos.

O Boko Haram, que chegou a ter ligações ao Estado Islâmico, vai buscar o nome pelo qual é conhecido à mistura da palavra árabe Haram e da palavra hausa Boko e pode ser traduzido por “educação ocidental é pecado”. Nascido em 2002, o grupo jihadista sobreviveu à morte em 2009 do fundador, Mohammed Yusuf, e de outros líderes. Hoje é chefiado por Bakura Doro, da etnia Kanuri, que deu em tempos um presidente à Nigéria, o general Sani Abacha, que governou entre 1993 e 1998, num interregno ditadorial numa Nigéria onde a prática democrática existe apesar de toda a violência religiosa, e da pobreza (chocante no maior exportador africano de petróleo).

Bola Tinubu é o atual presidente da  Nigéria, um muçulmano casado com uma cristã. Num encontro com uma delegação de bispos católicos, declarou-se fiel ao laicismo constitucional e declarou, comentando a violência: “Esta insegurança afeta todos, cristãos e muçulmanos. Não tenho preconceitos religiosos; não serei intolerante. A minha mulher é pastora da Igreja Cristã Redimida. Mas precisamos de pensar no nosso país; este país precisa de se desenvolver e de ultrapassar a intolerância religiosa. E estou aqui, aberto a vós, pronto para ouvir.”

Tinubu foi convidado para a missa inaugural de Leão XIV, tal como Peter Obi, um igbo, católico, que concorreu às últimas presidenciais e deverá voltar a candidatar-se em 2027. Apesar do voto seguir muitas vezes linhas étnicas e religiosas, a necessidade de manter unida a Nigéria (e, antes disso, de se fazerem eleger) tem levado os sucessivos líderes do país a procurar promover a coexistência entre comunidades, mas alguns Estados do Norte começaram a oficializar a sharia, a lei islâmica, o que assusta os cristãos que vivem em zonas de maioria muçulmana. No início dos anos 2000, quando Estados como Kaduna deram esse passo, houve protestos que degeneraram em violência, mas o conflito inter–religioso já vinha de antes, como provam as palavras de João Paulo II quando em 1982, na primeira das visitas à Nigéria (a outra foi em 1998), apelou, na cidade de Kaduna, à unidade numa reunião de líderes religiosos muçulmanos, dizendo: “Todos nós, cristãos e muçulmanos, vivemos sob o sol do único Deus misericordioso.”

Passados 43 anos sob esse apelo do Papa, a situação dos cristãos continua a degradar-se. O relatório publicado no início de 2025 pela Portas Abertas, uma ONG fundada por um holandês em 1955 para denunciar perseguição aos cristãos, coloca a Nigéria como o sétimo país mais perigoso para ser cristão: “A violência jihadista continua a aumentar na Nigéria, e os cristãos correm particularmente o risco de ataques dirigidos por militantes islâmicos, incluindo combatentes Fulani, Boko Haram e Estado Islâmico. Estes ataques aumentaram durante o governo do ex-presidente Muhammadu Buhari, colocando a Nigéria no epicentro da violência dirigida contra a igreja. A falha do governo em proteger os cristãos e punir os perpetradores apenas fortaleceu a influência dos militantes. Embora os cristãos costumassem ser vulneráveis ​​apenas nos Estados do Norte, de maioria muçulmana, esta violência continua a alastrar para a zona central e ainda mais para sul. Os ataques são chocantemente brutais. Muitos fiéis são mortos, principalmente homens, enquanto as mulheres são frequentemente raptadas e vítimas de violência sexual. Mais uma vez, são mortos mais fiéis pela sua fé na Nigéria do que em qualquer outro lugar do mundo. Estes militantes também destroem lares, igrejas e meios de subsistência. Mais de 16,2 milhões de cristãos na África Subsariana, incluindo um grande número da Nigéria, foram expulsos das suas casas pela violência e pelo conflito.”

Em abril, coincidindo com relatos de vários massacres, a revista britânica ‘The Spectator’ publicou um artigo com o título ‘O sofrimento dos cristãos nigerianos’ em que alertava para o que estava a acontecer num país de África onde o cristianismo chegou no século XV através dos portugueses: “A perseguição aos cristãos na Nigéria é medieval no seu horror. As aldeias são cercadas na calada da noite por bandidos que violam e matam os seus habitantes. Ninguém é poupado: mulheres e crianças estão entre os massacrados.”

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN