Ilustração: David Oliveira | Texto: Teresa Carvalho

Hoje, Fernando sorria com os olhos, sorria com a face toda, vivia a felicidade com o corpo inteiro.
Desde que a diabetes lhe roubara o pé, a sua vida resumia-se a saltitar de canadianas entre a sua casa e o bar e entre o bar e a sua casa.

Tinha braços fortes que lhe permitiriam ir mais além, mas o ânimo desaparecera. Agora, não encontrando em si utilidade alguma, para quê sair de casa? Para expor uma perna sem pé? Para terem pena de si? Já lhe bastava aquela que sentia e o cobria de tanta vergonha que ele tentava ocultar com uns copos de cerveja e com os parceiros de jogo.

Na verdade, nem precisava olhar o espelho para ter presente a perda de trabalho onde se sentia realizado e valorizado, a perda dos colegas de profissão, o orgulho de cuidar da sua família, a vida que se estendia em projetos por concretizar.

Mas hoje, Fernando quase que voa. Instalado na cadeira de rodas, acompanhou os vizinhos da aldeia no passeio anual. Não teve tempo para olhar a perna sem pé porque havia paisagens novas para admirar, tinha o dedinho sempre apontado do seu Joãozinho a dizer feliz: “Olha, pai, vê, vê…”

Havia anedotas, gargalhadas, brisa, cores, vozes, novos locais, estava misturado no grupo sem parecer ou sentir que era diferente – e a sua Ivone e o seu Joãozinho sempre a segui-lo. Joãozinho parecia um pião, a vibrar com toda aquela novidade mas sobretudo com a expressão de felicidade do pai.

Que saudades Fernando tinha de não sentir obstáculos a impedi-lo de viver e de vibrar com os momentos, assim, como Joãozinho. Que saudades de se sentir livre, a participar ativamente da vida, a andar com o Joãozinho às cavalitas. Tinha tantas saudades de se sentir feliz!
E Ivone?!… Havia tanto tempo que não olhava para Ivone de forma agradecida… ou a querer sequer saber o que ela sentia ou necessitava, ou quanto cansada estava. A verdade é que só tinha tempo para si mesmo e para a sua dor e revolta – e nela, arrastava também Ivone e Joãozinho e aqueles que precisavam da sua felicidade para completarem a deles.

De novo no autocarro, oculto pela mão em forma de concha que lhe cobria a face, chorou devagarinho. Chorou de dor pelo tempo em que se deixou estar com pena de si.
Mas também chorou de felicidade. Uma felicidade que hoje reexperimentara e que o deixava leve e capaz de recomeçar. Sem um pé, sim, mas com um outro capaz de caminhar, com braços fortes e sentidos apurados que lhe permitiriam ir tão longe quanto decidisse, admirando, encantando-se e agradecendo.

Tinha vida, tinha família, podia viver a alegria e derrotar o desalento. Aquele era o momento de viragem. Era o momento de assumir a sua decisão de retomar o comando da sua vida, fosse com ajuda de canadianas, de cadeira de rodas, ou mesmo necessitando da ajuda de alguém.
Fez uma festinha na cabeça de Joãozinho, puxou-o para o seu colo e, com Ivone a dar-lhe impulso, Fernando teve a certeza que um novo capítulo da sua vida e da vida da família começava agora, cheio do sol que ele decidira deixar entrar.