“Somos testemunhas da destruição da Amazónia, de outros ecossistemas e dos povos que ali vivem”, escrevem os responsáveis cristãos da América Latina e Caraíbas, num apelo destinado aos governantes e políticos que participarão na COP30, a Conferência das Partes sobre o Clima, que decorrerá em Novembro, em Belém do Pará, no Brasil. “Os nossos territórios, que consideramos sagrados, estão a ser destruídos”, acrescenta o apelo, assinado por 23 líderes de diferentes confissões, organizações e redes cristãs.
A conferência de Belém irá realizar-se dez anos depois do acordo estabelecido em Paris (Dezembro 2015) e também da publicação da encíclica ‘Laudato Si’’, do Papa Francisco (Maio do mesmo ano). No documento, os líderes religiosos dizem que a destruição está a ser “causada pela agricultura em larga escala, mineração e extração de combustíveis fósseis”, actividades que, “em nome do ‘progresso’, visam apenas a acumulação ilimitada e concentrada de capital”. Intitulado “Um apelo à acção rumo à COP30”, o texto, divulgado na página de notícias do Conselho Mundial de Igrejas, faz um diagnóstico preocupante de várias situações que exigem uma resposta imediata mas que continua a ser adiada: os que protegem as terras, “defensores do meio ambiente e dos direitos humanos, estão a ser cada vez mais perseguidos”, a eliminação dos combustíveis fósseis permanece “estagnada”, as promessas das sucessivas conferências sobre o clima ficam por cumprir.
“O caminho para a COP30 não pode cair nas armadilhas dos últimos anos: progresso estagnado na eliminação dos combustíveis fósseis, acordos de última hora e promessas quebradas sobre financiamento climático”, concretiza o documento, que foi entregue à ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas do Brasil, Marina Silva, na visita que ela fez ao grupo no último dia da reunião, em 20 de Março.
Nenhuma destas realidades é estranha à presença e acção dos Missionários da Consolata, em várias terras indígenas da América Latina e, concretamente, da Amazónia. Há poucos meses, morreu em São Paulo o padre Giovanni Battista Saffirio, que viveu 57 anos no Brasil, Estados Unidos da América e Canadá, e trabalhou durante duas décadas na missão Catrimani, junto do povo yanomami (1968-1979 e 1985-1995).
O padre Júlio Caldeira, também membro do Instituto, escrevia que o padre João Saffirio, como era conhecido, era um “grande missionário, intelectual e doutor em antropologia”, que se destacou no trabalho de assistência sobretudo na área da saúde, educação e defesa da vida dos indígenas, pela criação e dedicação ao Censo da população Yanomami”. Juntamente com o padre Guilherme Damioli, elaborou também o primeiro atlas etnológico yanomami, que contribuiu muito para a possibilidade de demarcação e homologação das terras do Território Yanomami, em 1992.
Expulsão dos missionários
Em 1987, os padres Saffirio e Damioli, bem como um grupo de irmãs da Consolata, foram expulsos pela Funai (Fundação Nacional do Índio), organismo estatal brasileiro que superintende as questões relativas aos povos originários do país. Em causa, estava a denúncia, feita pelos missionários, da invasão de 20 mil garimpeiros, que provocou a morte de muitos indígenas, recorda Júlio Caldeira. Depois de ter sido reconhecida a arbitrariedade do governo, o grupo regressou à missão.
Para leste, no mesmo estado do Roraima (Norte do Brasil, fronteiras com a Venezuela e a Guiana), localiza-se ainda a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), que desde 1972 conta com a presença de missionários da Consolata a viver no meio dos povos indígenas. Uma opção que significou passar “de uma perspectiva meramente sacramental, submissa aos poderes do latifúndio, para uma pastoral profética e libertadora vivida ao lado dos povos indígenas”, escrevia em Abril o padre Luiz Carlos Emer, missionário da Consolata em Maturuca, Roraima, na página Consolata América na internet.
“O marco referencial na luta pela libertação do território foi o compromisso ‘Ou vai ou racha’, quando os indígenas, em 26 de Abril de 1977, reunidos em Maturuca, a 320 quilómetros de Boa Vista, decidiram dizer ‘não ao álcool, sim à comunidade’, iniciando o processo de organização que culminou com a criação do Conselho Indigenista de Roraima”, conta o padre Emer. “Um compromisso que incluía a luta contra a invasão de garimpeiros e fazendeiros. Esse processo foi resultado de uma série de assembleias que começaram em 1977, na antiga Missão Surumu”. Talvez seja por isso, acrescenta, que, “em 2005, a igreja, a escola e o posto de saúde de Surumu foram incendiados, em um dos tantos ataques orquestrados pelos invasores”.
A TIRSS, com uma área de 1,7 milhões de hectares, inclui mais de 20.000 indígenas macuxi, wapichana, taurepang, ingaricó e patamona. Em Abril, o padre Emer contava na página referida o que tinha sido uma acção de formação na área da pecuária: “O projecto bovino contribui estrategicamente para a ocupação e protecção do território, que foi homologado para uso exclusivo dos povos indígenas, em 2005, pelo Presidente Lula”, dizia.
“O grande impulso à causa indígena foi dado” pelo projecto “Uma vaca para o Índio”, lançado em 1980, “que forneceu 52 cabeças de gado a cada comunidade, que, por sua vez, ao fim de cinco anos, se comprometia a entregar igual número de cabeças a outra comunidade”, refere ainda o padre Emer. “Esta iniciativa, apoiada pela Igreja Católica e por muitos benfeitores, contribuiu para a criação de um rebanho comunitário de mais de 30.000 cabeças de gado, tendo-se assistido a uma diminuição do efectivo nos últimos anos”, nota. “Infelizmente, hoje, os invasores não indígenas continuam a representar uma ameaça à autonomia e à dignidade dos povos indígenas.”
Avisos e exigências
O documento dos líderes religiosos dirigido à COP30 é, por isso, exigente nos avisos e nas exigências: “Pedimos compromissos na COP30 para a transição para 100 por cento de energia renovável e a eliminação progressiva dos subsídios aos combustíveis fósseis, redireccionando esses recursos para o desenvolvimento sustentável.”
“As comunidades da América Latina e do Caribe enfrentam” os “impactos climáticos devastadores e recorrentes,
demonstrando resiliência e criatividade na sua adaptação” aos novos problemas, acrescenta o texto, assinado por bispos e responsáveis católicos, a par de bispas, pastores e outros líderes de comunidades protestantes e evangélicas, bem como de organizações ecuménicas de ecologia.
No documento lê-se ainda: “Os compromissos assumidos na COP29 ficaram muito aquém do financiamento necessário para que os países em desenvolvimento enfrentem as mudanças climáticas.” Um exemplo concreto é o do Fundo de Perdas e Danos, que deve ser imediatamente tornado operacional, “com acesso simplificado e prioritário para as comunidades afectadas.”
Por isso, o apelo pede resposta imediata dos governos à emergência climática que o mundo já vive, ao cumprimento das promessas de financiamento climático e à execução total do Fundo de Perdas e Danos. Garantir uma transição justa para reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, apoiar as comunidades na adaptação às mudanças climáticas e dar prioridade aos que têm sofrido mais impactos provocados pela crise climática são outros objectivos que os líderes religiosos consideram importantes. Mas, sabendo que muitos cristãos continuam a votar em políticos que não consideram a emergência climática uma prioridade – ou chegam mesmo a negá-la –, a maior parte destes apelos deverão continuar a ser ignorados de novo na cimeira de Belém do Pará.
Os participantes na reunião acrescentam que estão solidários e unidos às “pessoas e comunidades mais afectadas” e citam a Carta aos Hebreus para dizer que “choram com os que choram”. “Mantemos firme a esperança de que Deus está a renovar as nossas mentes e o nosso mundo (Romanos 8, 19-21), enquanto nos chama com urgência à acção”. A COP30 em Belém, acrescenta o apelo, será “um momento crucial para reafirmar” o compromisso das diferentes confissões cristãs na sua “luta pela justiça climática.”
Texto: António Marujo, jornalista do setemargens.com, que escreve segundo a anterior norma ortográfica.