Américo Aguiar, cardeal e bispo de Setúbal

Pertenço à geração pós-25 de Abril. Não sei o que significa viver em ditadura, desconheço o papel da censura na escrita ou numa simples conversa pública. Sinto um receio teórico a propósito de buscas ou prisões, em função de opções de vida e de pensamento. Mas consigo falar e escrever sobre liberdade. Em primeiro lugar porque a nossa condição de crentes, assenta precisamente na liberdade dos filhos de Deus. Deus fez-nos homens e mulheres livres, tão livres que nada nos obriga a reconhecer esta condição. Tudo se joga numa liberdade íntima de adesão à descoberta do amor de Deus por cada um de nós.

Também consigo falar e escrever sobre liberdade, porque já foram muitos os momentos da minha vida em que consegui planear e executar ideias, consciente dos limites da liberdade em que me movi. A liberdade é colocada em causa, de forma regular, quando podemos defender a democracia em que vivemos. Sempre que temos eleições e somos chamados a votar, em liberdade, estamos a construir a democracia, a defendê-la de possíveis ataques, alguns claros, outros mais discretos.

Enquanto padre e bispo diocesano, enquanto cardeal de Roma, a toda esta realidade, acresce a minha obrigação de responder ao apelo que a Igreja nos faz, isto é, a de que todos os católicos devem responder ‘Presente’ quando chamados a votar. Não somos um rebanho fechado no seu redil, estamos no mundo; não vivemos para nós mesmos, devemos sim, ‘ser fermento’ na ‘massa’. Não temos pretensões de saber o que é melhor para todos, mas temos o dever de estarmos ao serviço de todos, de um modo particular dos mais frágeis da sociedade onde vivemos. Sempre entendi a política como a arte de servir a comunidade; o exercício do poder sem esta dimensão de serviço leva-nos para o lado oposto da democracia.

Votar é assim um dever que nos compromete com os outros, com a nossa realidade enquanto país e com a nossa identidade enquanto católicos. A abstenção é um flagelo do nosso tempo, só justificado pelo distanciamento coletivo do bem comum. Que as próximas eleições nos tragam um Portugal comprometido, atento ao próximo, capaz de saber distinguir o ‘trigo’ do ‘joio’ e disposto a criar o futuro das futuras gerações de portugueses e portuguesas.