O Papa São Paulo VI (1897-1978) considerava a Igreja uma “especialista em humanidade”, mas, atualmente há um sentido de humanidade que muitas vezes falta quando se tem de analisar a situação de tantas pessoas que, deixando os seus países, batem às portas de outros para pedir acolhimento e oportunidades. A Bíblia é uma história de migrações. Essas migrações são hoje um desafio pastoral para a comunidade cristã que deve passar da hostilidade à hospitalidade. Muitas vezes, também devido às simplificações e ao sensacionalismo difundidos através dos meios digitais, os utilizadores destas plataformas tornam-se vítimas de uma visão superficial e negativa das migrações, despojada da sua dimensão humana.
A humanidade sempre foi migrante. A partir das suas origens, no continente africano, deu-se um movimento de pessoas que se tornou uma constante na história. As causas foram sempre as mesmas: fatores naturais, sociais, económicos, políticos e a procura de recursos para uma vida melhor. Hoje, essa mobilidade humana continua presente, e a criar situações de riqueza e de renovação, mas também de pobreza e conflito. Devido à globalização, a gestão da migração é uma questão complexa e global. A preocupação com as migrações internacionais pode fazer esquecer as migrações internas, mas os fluxos migratórios, normalmente, ocorrem primeiro dentro dos países e, às vezes, convertem-se em migrações internacionais.
Na mensagem para o 109.º Dia Mundial do Migrante, assinalado em 2023, o Papa Francisco escreveu que é uma responsabilidade de todos, de cada país e da comunidade internacional, “assegurar a todos o direito de não ter que emigrar” – “O ato de migrar deveria ser sempre uma escolha livre, mas realmente, ainda hoje, em muitos casos não o é. Conflitos, desastres naturais ou, simplesmente, a impossibilidade de levar uma vida digna e próspera na própria terra natal obrigam milhões de pessoas a partir” – lamentou o Pontífice.
Relatórios da Organização Internacional para as Migrações e de organizações não governamentais apresentam um panorama em que a influência das mudanças climáticas na mobilidade humana é evidente. A encíclica ‘Laudato si’ e a exortação apostólica ‘Laudate Deum’ mostram a urgência de uma mudança de lógica no que diz respeito ao uso dos recursos naturais. Essa mudança de lógica é fundamental para reconstruir as relações entre os seres humanos e destes com a natureza.
O debate público sobre a migração
Num mundo dividido por fronteiras, pessoas em movimento encontram obstáculos políticos significativos para conseguir levar adiante o seu projeto migratório. Hoje, uma forma muito polarizada de discutir o assunto disseminou-se no debate público: os que são a favor do acolhimento versus os que são contra e hostis a ele. Mas há uma boa parte da opinião pública que não assume essas posições extremas.
Falar de migrantes como invasores, portadores de negatividade, com a rejeição que daí advém, é um discurso desprovido de humanidade. Hoje, mensagens que mostram que os migrantes podem gerar violência e ‘roubar’ postos de trabalho, por exemplo, são disseminadas pelas redes sociais, sabendo-se que as pessoas a quem estas mensagens chegam podem não ter uma preparação sólida que lhes permita discernir a objetividade de afirmações ou informações.
Assim, a repetição de mensagens simples, destinadas a apelar às necessidades urgentes das pessoas – como saúde, trabalho e segurança – desperta sentimentos egoístas que direcionam para um inimigo ou um bode expiatório: os migrantes. Isso cria uma forte corrente de opinião na sociedade que parece concordar em negar direitos básicos a grupos sociais como os migrantes. No entanto, acredita-se que o discurso de ódio é melhor combatido não através de polémicas, mas sim substituindo-o por mensagens positivas. Estratégias de comunicação baseadas em histórias positivas, em valores que podem ser compartilhados por muitos, podem ser mais eficazes do que ‘contranarrativas’ ou o uso de dados estatísticos. Trata-se de identificar histórias que não reforcem estereótipos, mas que proponham novos pontos de vista e que provoquem uma resposta empática e ativa.
Diálogo inter-religioso
Cristãos e muçulmanos deveriam sentir-se particularmente tocados pelo diálogo inter-religioso. De facto, a maioria dos imigrantes que tentam chegar à Europa são pessoas de fé cristã ou muçulmana. Os territórios por onde transitam têm uma presença cristã ou muçulmana significativa e os locais de onde embarcam são, maioritariamente, países de maioria muçulmana.
Nos últimos anos, o diálogo entre cristãos e muçulmanos tem-se concentrado, compreensivelmente, em questões como coexistência pacífica, cidadania igualitária e prevenção da violência religiosa, com a publicação de documentos e a organização de conferências. Não é tarefa imediata das autoridades religiosas e dos fiéis cristãos e muçulmanos sugerir soluções técnicas para os desafios que a imigração acarreta. No entanto, eles podem intervir num nível humanitário e cultural, contribuindo para o debate sobre esta questão à luz dos valores resguardados pelas suas tradições.
No documento sobre a ‘Fraternidade humana pela paz mundial e a convivência comum’, assinado em 2019 pelo Papa Francisco e por Ahmad Al-Tayyeb, grande imã de Al-Azhar (Egito), pode ler-se – “A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres.” A emigração, com todo o sofrimento que a acompanha, merece atenção. Já existem muitas iniciativas lançadas nesta área por indivíduos ou entidades institucionais, mas uma ação comum ajudaria a aprofundar as razões da amizade islâmico-cristã.
Texto: Sílvio Testa, Leigo Missionário da Consolata que trabalha com migrantes