Crónica: De “Tiaguinho sem-abrigo” a “Tiaguinho”, nome de carinho
– Sabem onde está o Tiaguinho do monte? No Lar do Belo Horizonte!
A notícia correu célere na aldeia. No final do dia todas as famílias sabiam do destino do conhecido “Tiaguinho do monte, o sem-abrigo”, e congratulavam-se com a sua nova sorte.
Tiaguinho, em criança, vivia com a sua mãe na colina mais alta da aldeia. Menino comunicativo, brincalhão, era a companhia da mãe e a sua principal “esperança”. Queria ser doutor de animais. Um dia, seria doutor, todos sabiam. Mas, o falecimento da mãe deixou-o perturbado, perdido, sem rumo. Deixou de querer ser doutor de animais, deixou de sorrir e até mesmo de falar. A casa já não era casa. A rua era o seu lugar, assim, sem nada, vazio, desprotegido, tal como ele se sentia. Trabalhava com os vizinhos nos campos, e em troca, estes davam-lhe de comer, roupa, algum dinheiro… era assim a vida de Tiaguinho do monte, o sem-abrigo.
Os anos foram passando, e de mudanças na vida de Tiaguinho, apenas as rugas e o cansaço de viver. Um dia, ouviu-se dizer que Tiaguinho foi para o hospital. Ninguém sabia o que tinha. Pneumonia, diziam alguns. Também ninguém foi visitá-lo.
Passaram alguns meses e ninguém o via regressar aos caminhos da sua aldeia. Foi então que a notícia se espalhou: Tiaguinho está no Lar do Belo Horizonte. Fátima ouviu a notícia. Recriminou-se.
Como puderam todos deixá-lo sozinho, abandonado, mais uma vez perdido? Dispensável?!
Recordou-se de como ficara impressionada quando, em menina, o pai lhe disse que Tiaguinho vivia como se fosse “sem-abrigo” mas se a mãe não tivesse morrido, ele seria o doutor Tiaguinho.
Decidida, Fátima anunciou em casa que lhe faria uma visita. Preparou umas guloseimas das que no passado o encantavam e dirigiu-se ao Lar do Belo Horizonte.
– Senhor Tiago Vasconcelos, tem aqui uma visita para si.
Fátima viu dirigir-se para ela um senhor altivo, de aspeto cuidado, de olhar curioso como quem tenta entender a estranheza do momento.
Quase irreconhecível, mas era mesmo Tiaguinho, agora o “senhor Tiago Vasconcelos”.
– Tiaguinho! – chamou ela ao vê-lo passar por si.
Tiaguinho virou-se. Olhou-a prolongadamente. Depois, como que acordando, pegou-lhe na mão,
beijou-lha, e, num impulso, levantou-a como se fosse um troféu recém conquistado.
Apanhada de surpresa, Fátima não reagiu. Deixou-se ir nas manifestações de afeto de Tiaguinho, comovida com a intensidade da alegria que a sua visita provocara. Depois, ficou ali a fixá-la, feliz. No olhar cristalino de Tiaguinho, Fátima viu quanto afeto aprisionado por uma dor maior, mas que nunca deixara de existir. E mais uma vez Fátima envergonhou-se de nunca antes o ter acolhido assim: ela, que tinha tudo, só fora capaz de lhe dar um nome com carimbo que excluía: “Tiaguinho do monte, o sem-abrigo”. Afinal, podia chamá-lo de “Tiaguinho do monte, o que pega ao colo” ou “Tiaguinho do Monte, o que se encanta”, ou “Tiaguinho do monte, o de olhar profundo”.
Aquela visita transformou Fátima, a vida de Tiaguinho e da aldeia: todos os fins de semana alguém ia buscar o seu novo amigo. De sorriso cheio, Tiaguinho visitava a gente que conhecia e a sua casa no cimo do monte, agora reparada com os esforços de toda a aldeia. Nunca mais houve “Tiaguinho, o sem-abrigo”. Passou a haver apenas “Tiaguinho” só nome de carinho. E a aldeia era agora bem mais bonita!