Crónica: Tempo de multiplicar
– Carmo, precisamos que o teu contributo no ‘Banco de tempo’ seja “ouvir”. Que te parece?
– Só ouvir?Carmo ficou desapontada. Aderiu ao ‘Banco de tempo’ esperando partilhar o seu saber e fazer algo para melhorar a vida de alguém. Talvez dando explicações, ajudando a redigir ou a interpretar algum texto, a preencher algum documento.
Pondo o orgulho de lado, Carmo decidiu aceitar. Se queria colaborar, deveria ser naquilo em que necessitavam dela.
– E como faço isso?
– Basta estares disponível para atender o telefone. És a pessoa certa para “apoiar”.
Na primeira semana, um telefonema surpreendeu-a. Do outro lado da linha, uma voz de senhora. Relatava uma história triste, num tom desalentado, emocionado. Falou-lhe de um filho que amava e que se envolvera em consumos de estupefacientes. Perdera o trabalho e separara-se da esposa. A mãe acolheu-o em casa mas alterar a atitude de revolta consigo próprio e com todos não dependia dela. Via-o perdido num mundo que o destruía… Carmo ouvia. Deixou-se cativar por aquela senhora que num telefone, algures, confiava-lhe segredos e tentava não se sentir só, buscando um consolo mesmo que feito apenas de uma voz, ao longe.
A ternura de Carmo foi apaziguando a dor da senhora do outro lado da linha. No final da conversa, Carmo prometeu:
– Senhora Maria, eu não sei ajudá-la, mas conheço alguém a quem vou pedir orientação e devolvo-lhe a chamada ainda hoje.
Do lado de lá, um suspiro de alívio.
– Obrigado, minha amiga! Nunca tive coragem de falar sobre isto. Era como se traísse o meu filho. Hoje, deixa-me aliviada do peso que carrego há meses!
Foi um peso que Carmo segurou. E agora? Agora era preciso ajudar a senhora Maria e o filho!
Fez uma lista da sua rede de amigos e conhecidos que a podiam ajudar nesta área e iniciou um roteiro de contactos. As possíveis soluções iam chegando. E ela continuava pedindo, insistindo.
Quando devolveu a chamada à senhora Maria ela acolheu-a com uma alegria que emocionou Carmo. Há quanto tempo não era recebida com tanta alegria! Sentiu que afinal a senhora Maria é que a acolhia a ela. Estavam já ligadas, mesmo sem se conhecerem. Apresentado o plano proposto pela rede de apoio, a senhora Maria acende a esperança. A certeza de não estar só e de haver possíveis saídas, revitalizaram-lhe as forças. Agora sim, sente-se capaz de ajudar o filho a reconquistar a sua dignidade. E deste lado da linha, Carmo ia seguindo, acompanhando, rindo em conjunto, emocionando-se juntas, sonhando em voz alta e fazendo pontes.
Outros telefonemas, outras histórias, outros contactos, sempre construindo soluções – e o seu mundo crescia ao ritmo das pontes que se construíam. A dor que ouvia, derrubava-a, mas a alegria de ser uma mola que impulsiona a mudança, dava-lhe asas. No mundo submerso do silêncio e do desânimo, eram desenhadas janelas de soluções, nascidas da solidariedade. No Banco de tempo’ , de ouvido atento ao trim-trim, Carmo imprimiu um sentido novo à linha de telefone: passou a ser proteção e acolhimento. Através dela e do seu tempo, Carmo transforma o tempo de hoje e projeta um novo amanhã, com nome de esperança.