Criança recebe cuidados médicos no Líbano | Foto: DR

O mundo regista atualmente o maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial e a percentagem de crianças que vivem em zona afetadas pelos mesmos praticamente duplicou, de dez por cento na década de 1990 para quase 19 por cento neste início de ano, tendo ultrapassado os 473 milhões. O alerta é dado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no seu mais recente estudo, que acaba de ser divulgado.

Intitulado “Perspetivas para as crianças em 2025”, o documento assinala, desde logo, que essas perspetivas não são animadoras. “O mundo está a enfrentar uma nova e intensificada era de crise para as crianças. Muitas dessas crises – incluindo mudanças climáticas, conflitos e instabilidade económica – estão intimamente interligadas. Elas refletem um mundo de crescentes tensões geopolíticas e competição entre nações, que estão a dificultar a implementação de soluções”, pode ler-se.

De acordo com a Unicef, num contexto de aumento das rivalidades geopolíticas e de paralisia das instituições multilaterais, “tanto atores estatais quanto não estatais parecem cada vez mais dispostos a ignorar as leis internacionais projetadas para proteger populações civis”. Prova disso é o facto de os ataques a infraestruturas como escolas e hospitais estarem a tornar-se “cada vez mais comuns”. Essa tendência está a provocar “um impacto arrasador nas crianças” que, além de correrem risco de vida, “enfrentam deslocamento, fome, doenças e ameaças ao bem-estar psicológico”, denuncia a instituição.

Crianças “desproporcionalmente impactadas” por dívidas e alterações climáticas

E se mais de 473 milhões de crianças (uma em cada seis) vivem em regiões afetadas por conflitos, há também mais de 400 milhões que vivem em países “com alto nível de endividamento”. E, segundo a Unicef, “sem reformas importantes [do sistema financeiro global], esse número deve aumentar”.

Entre os 34 países da União Africana com dados disponíveis, 15 “alocam mais para o serviço da dívida do que para a educação”, e mais de 40 países subdesenvolvidos “gastam o dobro no pagamento da dívida relativamente à saúde, incluindo alguns países com populações infantis muito grandes”, refere o estudo.

O documento alerta também para o facto de a perspetiva para as crianças ser “cada vez mais preocupante” no que diz respeito à crise climática. “Num mundo que agora está a caminho de ver as temperaturas globais aumentarem em pelo menos 2°C até 2100, as crianças são desproporcionalmente impactadas”, afirma a Unicef, detalhando que os menores de cinco anos irão suportar “88 por cento da carga global de doenças associadas às mudanças climáticas”.

Minas espalhadas na Síria ameaçam cinco milhões

Já na última terça-feira, 14, numa conferência de imprensa, o coordenador de comunicação para emergências da Unicef, Ricardo Pires, alertava que, mesmo em países onde aparentemente o conflito poderá estar ultrapassado, as crianças continuam a enfrentar sérios riscos.

Ricardo Pires referia-se, em particular, à situação na Síria após a queda do regime de Bashar al-Assad. “À medida que crescem as esperanças de um dividendo de paz para as crianças sírias, meninas e meninos no país continuam a sofrer o impacto brutal de munições não explodidas (UXO, na sigla inglesa) a uma taxa alarmante”, afirmou, a partir de Damasco.

De acordo com o responsável, só no passado mês de dezembro, mais de 100 crianças foram feridas ou mortas por explosivos. “A situação é muito grave. As crianças realmente não têm como sair de casa sem pensar que algo mau pode acontecer-lhes, o que causa muito trauma, não só nelas, mas também nas famílias”, assinalou Ricardo Pires.

Nos últimos nove anos, pelo menos 422 mil incidentes envolvendo munições não explodidas foram relatados em 14 províncias da Síria, e metade das vítimas estimadas foram crianças. E a ameaça continua a ser real porque o solo “permanece infestado por mais de 300 mil minas espalhadas pelo país”. Isto significa que o perigo afeta cerca de cinco milhões de crianças que vivem nas áreas contaminadas por explosivos.

O coordenador de comunicação ressaltou que a ameaça se intensificou ainda mais desde a queda do regime do ex-presidente Bashar al-Assad, a 8 de dezembro, dado que muitas armas, incluindo explosivos, foram deixadas para trás, em Homs, mas também em Damasco. Além disso, as recentes ondas de deslocamento agravaram o perigo. “Desde 27 de novembro, mais de um quarto de milhão de crianças foram forçadas a fugir das suas casas devido ao conflito crescente. Para essas crianças, e para aquelas que tentam retornar às suas áreas originais, o perigo de UXO é constante e inevitável”, afirmou.

Ricardo Pires não se limitou a citar números, mas partilhou o relato que escutou de uma dessas crianças: Abdul, de 12 anos, que conheceu nos arredores de Hama. “No dia 18 de dezembro, ele estava a jogar futebol com amigos num campo atrás de sua casa quando um deles pisou algo brilhante no chão. O que se seguiu foi uma explosão que matou Mohamed, de 15 anos, primo de Abdul, e feriu Abdul e o seu irmão de dez anos, que agora estão em recuperação de múltiplas fraturas nas pernas e braços. Eles já não conseguem andar sem ajuda. Ambos estão profundamente traumatizados. As suas histórias são muito comuns”, lamentou o responsável de comunicação.

“Mas há coisas que podemos fazer hoje para tornar a vida um pouco mais suportável para essas crianças”, assinalou, exemplificando: “pressionar por maiores esforços humanitários de desminagem para remover os restos mortais da guerra e tornar as comunidades seguras novamente”, “expandir a educação sobre o risco de minas” e “fornecer suporte abrangente para sobreviventes — incluindo cuidados médicos, reabilitação e serviços psicossociais — para que eles possam recuperar a sua dignidade e reconstruir as suas vidas”.

E deixou um apelo a todos os envolvidos nas discussões sobre os esforços de reconstrução da Síria, apoiados pela comunidade internacional: “é fundamental que investimentos imediatos garantam que o solo esteja seguro e livre de explosivos”. “Devemos a essas crianças não apenas ouvir, mas agir. Não há esperança de reconstrução na Síria quando há tanta destruição ainda à espreita no chão”, concluiu.

Texto redigido por Clara Raimundo/jornal 7Margens, ao abrigo da parceria com a Fátima Missionária.