Raúl revelava agora as feridas por cicatrizar de uma história de abandono e de rejeições.
A vida dele estava ali exposta, escrita em forma de relatório e debatida em frente a magistrados, do seu advogado que não sabia como defendê-lo e de outros a quem ele foi conhecendo na escola, no centro de saúde, e noutros locais onde fez asneira. Viu desfilar relatos de agressões, de destruição, de roubos, de ameaças, de fugas da escola e de todas as tentativas frustradas dos que tentaram que ele acreditasse neles e em si próprio.

Enquanto decidiam da sua vida, Raúl viu desfilar os seus 16 anos em jeito de história sem final feliz, nem sequer o meio nem o início: tudo sem cor, negro, sem esperança de milagre.
A confirmá-lo, a decisão do juiz: internamento num lar especializado para jovens com problemas graves de comportamento. Raúl ouviu, silencioso, sem expressar qualquer sentimento.

Queriam que se importasse? – com quem, se não acreditava que alguém se importava realmente com ele?
Que se motivasse? – para atingir o quê, se nada lhe dava gozo e se não esperava poder alguma vez alcançar algo que lhe enchesse a alma?
Deveria esforçar-se? – para quê se não tinha ninguém a abraçá-lo e a vibrar com ele pelas vitórias que alcançasse ou a chorar com ele quando a dor era escaldante?
Portar-se bem? – que ganharia com isso, se sabia que nem o seu bom comportamento seria suficiente para “comprar” afetos de verdade, e se era precisamente quando se portava mal que reparavam nele?
Devia perdoar? – E então, o seu sentimento de “justiça”? Como poderia perdoar a quem impediu, desde menino, que ele tivesse aquilo de que tanto precisava e que era seu por direito de criança e de “gente”: um colo, um sorriso de boas vindas, um braço forte que protege, uma mão que cuida e orienta – onde estavam eles?
Apaziguar-se? Raúl nem sabia se queria. Sentir-se revoltado contra a vida e contra todos, anestesiava em parte a dor de não entender o “porquê” desta sua história triste e de fracasso.

Foi “acordado” destes pensamentos pelo agente da polícia a convidá-lo a sair da sala de julgamento.

Nessa altura, Raúl olhou para a “sua” diretora do colégio onde vivera durante quatro anos e que o ouvia e acalmava, sobretudo quando a gravidade do seu comportamento excedia os limites máximos.
Mesmo não confiando em ninguém, sabia que ela era de confiança. Para si já não pedia nada, mas para o Marco… talvez o Marco ainda possa aproveitar. Talvez ele ainda se consiga safar.
Então, num ímpeto de desejo de que o milagre aconteça para um amigo, Raúl agarrou a mão da diretora que o veio abraçar e com toda a força do restinho de esperança que afinal ainda guardava, pediu-lhe:
– Diretora, não largue o Marco. Não o largue! Ele precisa de se portar bem. Diga-lhe isso. Diga-lhe que aproveite! Diga-lhe que vá à escola. Diga-lhe que ele pode tornar-se um homem com letra grande. Diga-lhe, e não o largue! Não o largue!

E muito baixinho, envergonhado disse:
– Obrigada, diretora! Ainda bem que me pararam! Talvez um dia…
Raúl saiu e deixou atrás de si, a pairar no ar, um rasto de esperança pronta a ser usada para o fazer crescer até ser homem com letra grande e alterar o rumo da sua história – para uma história com meio e final feliz!
– Não o larguem!

Texto: Teresa Carvalho | Ilustração: David Oliveira