Desde o início da minha colaboração na Propaganda Fide (Propagação da fé, em português), era comum ouvir o cardeal Filoni, então Prefeito da Congregação, dizer – “Por detrás dos papéis que passam nas vossas mesas de trabalho há milhares de pessoas”. Esta era uma frase que consolava uma pessoa como eu. Ficar no escritório era impensável para mim, mas o cardeal Filoni tinha-me convencido que a partir de setembro de 2017 começaria a seguir milhares de pessoas das circunscrições eclesiásticas da minha competência: pessoas de África e da América Latina. Não estava, portanto, sozinho pois “por detrás dos papéis há milhares de pessoas…”

Era, e sou, um dos 22 oficiais sacerdotes de diferentes nações de África (Gana, República Democrática do Congo, Moçambique, Senegal e Tanzânia), Europa (Itália, Malta e Polónia), Ásia (Índia, Filipinas, Sri Lanka, Coreia e China), e Estados Unidos da América que fazem parte do secretariado. Divididos por áreas culturais e linguísticas, a nossa tarefa principal é seguir as cerca de 1100 circunscrições eclesiásticas – arquidioceses, dioceses, ordinariatos militares, vicariatos apostólicos, prefeituras apostólicas, missões “sui iuris”, administrações apostólicas – que dependem do Dicastério.

Todos os dias o Dicastério recebe vários relatórios dos núncios apostólicos, conferências episcopais, dioceses e outros organismos, que descrevem situações acerca das relações Igreja-Estado, evangelização, pastoral, inculturação, formação, administração, perfil das Igrejas, disposições para os bispos, casos especiais, e é através destes relatórios que se pode acompanhar a vida das várias e numerosas igrejas particulares.

Este compromisso é uma escola onde aprendo a conhecer e a amar a minha igreja missionária. Nos nossos encontros semanais temos a oportunidade de conhecer também a situação daquelas igrejas, e assim podemos ter uma visão completa da nossa igreja missionária. Com o estudo da documentação recebida ajudamos o Santo Padre para decidir sobre a criação, modificação, supressão de circunscrições eclesiásticas e verificamos as necessidades dessas Igrejas. Podemos também acompanhar a formação do clero diocesano, a vida religiosa consagrada, o apostolado dos catequistas, e, finalmente, alguns de nós verificam a disciplina do clero e a vida consagrada na igreja missionária.

No tempo que me resta depois deste trabalho gratificante no ministério, dedico-me às obras às quais decidi consagrar-me quando escolhi entrar no Instituto Missionário da Consolata. Visito paróquias e famílias e acompanho espiritualmente os sacerdotes e religiosas dos colégios da Propaganda Fide com retiros, exercícios espirituais e confissões.

De Propaganda Fide a Dicastério para a Evangelização
Fundado no século XVII dentro do contexto colonial, o organismo Propaganda Fide colocou a ação missionária no centro da vida da Igreja. Foi um caminho inicialmente marcado pela missão no estilo colonial, para depois chegar à missão intercultural. Um caminho que passou do conflito e do confronto ao diálogo no encontro com as diferentes culturas do mundo.
O aniversário da bula “Inscrutabili Divinae”, com a qual o Papa Gregório XV estabeleceu a “Sacra congregatio de Propaganda Fide”, em 1622, coincidiu com a promulgação da constituição apostólica “Praedicate Evangelium”, com a qual o Papa Francisco deu uma estrutura mais missionária à Cúria para que esta estivesse cada vez melhor ao serviço das Igrejas particulares e da evangelização. Com este documento, o Papa uniu também a já antiga e conhecida Propaganda Fide com o pontifício Conselho para a Nova Evangelização, criando o novo “Dicasterium pro Evangelisatione”.
Depois do Concílio de Trento (1545-1563), a necessidade de unir e centralizar a organização da atividade missionária levou o Papa Gregório XV a fundar o organismo Propaganda Fide. Havia necessidade de dar maior impulso a uma ação mais unificada e concertada num contexto marcado pela colonização e pelo sistema de “padroado”, em que a evangelização era confiada a um Estado.
A intenção era assegurar que a evangelização “não fosse condicionada pelas grandes potências do momento ou por particularismos religiosos”, conforme disse o professor Pizzorusso, da Universidade G. D’Annunzio, de Chieti, em Itália.
A Propaganda Fide foi criada para coordenar forças, dar direção às missões, promover a formação do clero e das hierarquias locais, encorajar a fundação de novos institutos missionários e fornecer ajuda material para as atividades missionárias. Ela seria responsável pela difusão da fé católica no mundo.
Com a constituição apostólica “Regimini ecclesiae universae”, em 1967, São Paulo VI confirmou a competência geral do dicastério missionário como órgão central da Igreja, e mudou o seu nome para Congregação para a Evangelização dos Povos. Paulo VI tinha compreendido que o nome “propaganda” não era adequado – a missão da Igreja não é “a propagação da fé”, mas a evangelização. A transição é de propaganda para serviço, de imposição para dom gratuito, de obrigação para liberdade.
O Papa Francisco, com a constituição apostólica “Praedicate Evangelium”, em 2022, estabeleceu o “Dicastério para a Evangelização”, presidido diretamente pelo pontífice, composto pela secção para as questões fundamentais da evangelização no mundo e a secção para a primeira evangelização e as novas igrejas particulares. A primeira secção retoma o legado da Propaganda Fide, e da segunda dependem algumas circunscrições eclesiásticas. Existem 1.117 circunscrições eclesiásticas (arquidioceses, dioceses, vicariatos apostólicos, prefeituras apostólicas) sob a jurisdição do dicastério missionário, com o objetivo de se sentirem parte de uma unidade.

Estratégia missionária
A professora Françoise Fauconnet–Buzelin destaca a grande importância de “Les instructions de la S. Congregatio de Propaganda Fide”, um documento de 1659 que pode ser definido como a “magna carta” das missões modernas, e que condensa as linhas essenciais da estratégia missionária – a proibição aos missionários de intervirem na vida política e de participarem em atividades comerciais, a necessidade de lhes proporcionar uma formação científica e espiritual, a criação de um clero indígena e a adaptação às culturas nativas.

Escola de missão
O Papa Urbano VIII, com a bula “Immortalis Dei Filius”, em 1627, fundou o “Pontifício Ateneu de Propaganda Fide”, com as faculdades de filosofia e teologia para a formação básica dos missionários. Em 1933, a Congregação para Seminários e Universidades criou o “Pontifício instituto científico missionário” para oferecer uma especialização adicional garantida por graus académicos nas disciplinas missiológicas e jurídicas. A universidade está localizada no Monte Janículo, no Vaticano, e abriga as faculdades de teologia, filosofia, direito canónico e missiologia (para missionários e sacerdotes de todo o mundo) e, desde 1976, também o Instituto de Catequese Missionária. Atualmente, a universidade é frequentada por cerca de 2.000 estudantes, com um corpo docente de cerca de 170 professores. Uma das suas joias é a biblioteca missionária, que contém cerca de 350 mil volumes, e desde 1933, publica anualmente uma preciosa “Bibliografia missionária” que cataloga todas as publicações sobre o tema a nível mundial.

Formação
Os mesmos motivos apostólicos que inspiraram a criação da Propaganda Fide estiveram na origem da criação do Pontifício Colégio de Propaganda Fide, conhecido como o Colégio Urbano, em 1627. O objetivo era claro desde o início, como referiu Leonardo Sileo, sacerdote e reitor da Pontifícia Universidade Urbaniana – “Ser uma residência para acolher e formar jovens de diferentes continentes e de diferentes ritos cristãos (especialmente orientais) para o sacerdócio e a missão, com especial enfoque no conhecimento e estudo das línguas e culturas de todo o mundo”.
A partir desta experiência, a Propaganda Fide fundou faculdades para a formação do clero local também em terras de missão. É o caso do Colégio de Zacatecas, no México, que começou a funcionar em 1707. A Propaganda Fide levou milhares de jovens a Roma para apoiar a sua educação, sem perturbar as suas culturas de origem, e para os devolver às suas comunidades, o que pode ser considerado “uma contribuição para a compreensão e respeito mútuos entre povos”, que começou séculos antes dos programas “Erasmus”.

Ao encontro de culturas
Nos séculos em que o colonialismo europeu invadiu o mundo e espalhou a ideia da superioridade da Europa, a Propaganda Fide seguiu o oposto. “Não a superioridade de ninguém – branco, europeu ou ocidental – mas sim a igualdade e igual dignidade de todos”, como disse o professor Giampaolo Romanato. A testemunhar esta abordagem há a prática que indica que o missionário “deve aprender a língua local”, porque “falar a língua do interlocutor é a principal forma de ele se sentir tratado como igual”. A Propaganda Fide foi a primeira instituição global, na qual os fluxos de troca de informação não se destinavam a gerir “alta política”, mas sim a lidar com a existência quotidiana de pessoas.

Constante adaptação
No seu encontro entre povos, a Propaganda Fide foi confrontada com a diversidade de culturas e políticas, numa altura em que os perigos das viagens tornavam a troca de informações precária. Ao mesmo tempo, teve de promover a unidade católica de doutrina, fé e liturgia. Como o professor Burigana recordou ao discutir “Propaganda Fide e o mundo da reforma”, missionários que chegaram ao Extremo Oriente, ou às regiões americanas mais inacessíveis, aproximaram-se de populações que eram “radicalmente diferentes”. Os problemas que surgiram demonstraram que a “verdade do catolicismo romano era chamada a enfrentar estas diversidades radicais. Era necessário encontrar soluções que pudessem conciliar a unidade da própria fé, e da teologia que a expressava, com a diversidade”. Salvar a unidade abraçando a multiplicidade foi uma tarefa onerosa confiada à Propaganda Fide, que foi sempre chamada a manifestar uma grande vontade de adaptação e a encontrar novas soluções para situações que na Europa não eram previsíveis. A Propaganda Fide teve o seu próprio caminho nos seus quatro séculos de vida, e hoje encontra outros desafios.

Texto: Osório Afonso, Missionário da Consolata moçambicano, oficial do Dicastério para a Evangelização