Há uma fotografia onde surge de calças arregaçadas, a atravessar o rio. Como entende a necessidade de ir ao encontro das comunidades?
Uso todos os meios para chegar a lugares de difícil acesso. A diocese de Tete é imensamente grande, bastante montanhosa, e dividida por rios. Às vezes somos surpreendidos pelas enchentes e é preciso atravessar rios a pé. Na última travessia tive consequências. Tinha uma ferida no pé e apanhei uma infeção de uma bactéria na água. A doença chama-se filaríase linfática. Desde que sou bispo, tem sido um contínuo viajar, neste imenso território, ao encontro dos cristãos. Fico pouco tempo em casa, no escritório. Estou muito em movimento, para acompanhar a atividade missionária, sendo uma presença próxima junto dos fiéis, muitos dos quais nunca tinham visto um bispo. Penso que a travessia mais difícil que fiz foi em Cahora-
-Bassa, junto à albufeira. Primeiro de barco, e depois a pé. Durante uma hora e meia foi preciso escalar uma montanha, mesmo a pique, para visitar uma população que vive no cume.

Como lida o país com as frequentes tempestades e com a seca?
Moçambique sofre muito com as catástrofes naturais. É uma constante. As alterações climáticas afetam o mundo inteiro, mas particularmente os países mais pobres. Nestes últimos anos, em cada ano, Moçambique sofreu com calamidades naturais. A região de Tete é e foi afetada. Este ano, estamos novamente na iminência de sofrer fortes ventos e chuvas intensas, que provocam inundações, vítimas humanas, muitos estragos, estradas cortadas, pontes que desabam, regiões que ficam isoladas, infraestruturas que ficam sem telhado. Nós, como diocese, tivemos prejuízos bastante grandes devido, sobretudo, aos ciclones. São situações que são cada vez mais frequentes em Moçambique e África em geral. Em muitas zonas há seca. As infraestruturas escolares e sanitárias são muito afetadas, o que tem repercussões na saúde e educação. As águas acabam por ser portadoras de muitas doenças como a cólera e diarreias. A posição geográfica de Moçambique, sobretudo o litoral, é sujeita a tempestades cíclicas, mas enquanto antes as catástrofes aconteciam a um ritmo de talvez sete a sete anos, nos últimos anos, devido às mudanças climáticas, as catástrofes são mais frequentes.

Números recentes indicam que há um milhão de deslocados devido ao conflito em Cabo Delgado. Que efeitos têm tido os ataques?
Os insurgentes exercem violência sobre as populações, destroem infraestruturas, têm uma ação desestabilizadora. Esta violência provocou centenas de mortos, milhares de deslocados internos, paralisação económica de grandes projetos que existiam naquela região, sobretudo ligados ao gás, e isso tem repercussões na economia nacional. As populações que fogem dos ataques vivem numa situação muito difícil. O governo teve de abrir campos de refugiados, mas sem o mínimo de condições. São pessoas que vivem em tendas, ou em barracas construídas com material local, e expostas ao frio, chuva e sol. O que recebem em termos de alimentação não é suficiente para as suas necessidades.

Em Moçambique sentem-se os efeitos da guerra na Europa?
A guerra na Ucrânia tem repercussões em Moçambique com o aumento do preço dos combustíveis, dos alimentos e sobretudo também, com a diminuição das ajudas. Moçambique é um país que depende do trigo [cuja Ucrânia é um dos grandes produtores], e o pão é um alimento básico da população.

Qual é atualmente o ponto de situação do conflito em Cabo Delgado?
O conflito já dura há cinco anos e parece longe de terminar. Os ataques ainda continuam. Apesar de uma força internacional, de apoios da África Austral e de soldados do Ruanda, há uma guerrilha que é difícil de vencer. Provavelmente há cumplicidades a nível local. Os insurgentes são financiados e equipados e, sobretudo, também colhem, entre a população, os frutos do mal-estar. Talvez os mentores e financiadores estejam fora, e estão ligados a esta grande rede de movimentos fundamentalistas de cariz islâmico, mas não é uma guerra religiosa. Há outros interesses, de ordem económica e política que nós não conhecemos profundamente, o que torna difícil entender e resolver este conflito. Apesar da ajuda na formação de soldados, está-se longe de eliminar esta insurgência. Os grupos armados são constituídos por jovens recrutados localmente. Moçambique é um país onde mais de metade da população tem menos de 18 anos. Os jovens têm uma certa revolta porque sabem que a província na qual nasceram é rica em recursos naturais e não veem os benefícios da riqueza. Muitas vezes, isto cria um mal-estar e é esse o  ambiente que proporciona que os terroristas tenham mão de obra. Muitos jovens ingressaram nestes grupos por causa de razões económicas e de insatisfação. Nota-se da parte da juventude, que tem poucas perspetivas de futuro, uma adesão. Há poucas oportunidades de trabalho. Os jovens são aliciados por estes movimentos, com apoios económicos. É preocupante.

Que medidas tem tomado a Igreja de Moçambique para proteger os menores de eventuais abusos sexuais cometidos por membros da Igreja Católica?
Desde 2019, quando o Papa Francisco assumiu este problema e tomou medidas, a Igreja em Moçambique também teve que que criar os mecanismos para salvaguardar aquilo que é a integridade das crianças e jovens. Criámos um código de conduta e de procedimentos para quando há uma denúncia, indicando o que fazer.

Quais as principais medidas e dinâmicas que procurou promover enquanto bispo?
A diocese de Tete tinha um défice de evangelização. Havia e ainda há partes do território sem a presença missionária, com missões fechadas, algumas há 50 anos, devido às guerras que afligiram a província de Tete, como a guerra colonial e civil. Tete é também uma província periférica. Não é fácil ter missionários. Deparei-me com missões sem padres nem missionários. A minha preocupação, além de visitar, é dar ‘pastores’ às comunidades cristãs. Logo que cheguei fiz muitos convites. Houve muitos ‘nãos’ por falta de pessoal e possibilidades, mas também respostas positivas, sobretudo de novas comunidades, nomeadamente do Brasil, que têm um dinamismo grande. Nestes quatro anos, consegui levar missionários e missionárias para a diocese. São 11 novas congregações: três masculinas e oito femininas – que assumiram responsabilidades pastorais em paróquias que não tinham missionários e em outras que criei. Aliado à procura de ‘pastores’, é preciso formar o clero diocesano. Nestes quatro anos tive a graça de ordenar dez sacerdotes diocesanos. Encontrei na diocese de Tete 12 sacerdotes. Hoje são 22. Com a ordenação de padres diocesanos, foi possível criar paróquias. Nestes quatro anos, criei oito paróquias. Uma média de duas por ano. Quando cheguei, encontrei 28 paróquias. Hoje são 36. Dessas 36, já são poucas as que não têm padre ou irmãs. Isto pressupõe, da nossa parte, um investimento. Os padres e as irmãs precisam de casa para residir. Por isso, há um esforço na construção de infraestruturas. Em novas paróquias, há que construir igrejas paroquiais e conseguir o mínimo de condições para a paróquia crescer. Temos uma grande equipa que trabalha para dar um maior dinamismo missionário à diocese. Há o objetivo de criar uma nova diocese, dividindo a diocese de Tete, e criando a diocese de Vila Ulonguè, talvez num prazo de cinco anos. É um sinal de crescimento.

Qual a maior ajuda que a Igreja em Portugal deveria dar ao povo moçambicano?
A Igreja em Portugal tem sido solidária com o povo moçambicano, nomeadamente com as situações de calamidades naturais, que aconteceram nos últimos anos, e também no apoio às vítimas da insurgência em Cabo Delgado. São dois países com laços históricos importantes. O apoio também se pode tornar muito importante na formação, para que sacerdotes e seminaristas de Moçambique se possam formar em Portugal, onde há tantos institutos superiores, universidades. Em Moçambique há muitos jovens inteligentes, capazes, e que necessitam de uma formação qualificada, que não encontram lá. Pode haver maior colaboração e abertura de mais portas. A cooperação não se faz apenas através da construção de infraestruturas e donativos, mas também com a formação de pessoas.

Qual o seu maior sonho para Moçambique?
É a paz definitiva e mais democracia. Uma democracia não de papel, de fachada, mas sim uma democracia onde se aceita o multipartidarismo, em que haja alternância no poder e onde todos se sintam filhos da mesma casa. Um país de todos para todos.

Texto: Juliana Batista