Não faltou quem pensasse que o camião com explosivos que foi lançado por um motorista suicida ao serviço da Al-Qaeda contra a sinagoga Ghriba em Djerba, a 11 de abril de 2002, seria o fim da comunidade judaica na Tunísia. Não tanto pelos 20 mortos causados pelo atentado, entre eles vários turistas alemães, mas por poder ser encarado como sinal pelos judeus de Djerba (e seus correligionários noutros pontos da Tunísia) de que a terra que os acolhia há quase três mil anos deixava de ser segura e, portanto, o futuro passaria pela emigração para França ou Israel. Duas décadas depois, basta visitar a Ghriba ou o bairro judaico de Hara Kbira, em Houmt Souk, para se perceber que esse êxodo afinal não aconteceu.

“Somos judeus a viver entre muçulmanos, mas sobretudo somos todos tunisinos. Esta é a nossa terra”, afirma Haïm Bittan, grande rabino da Tunísia desde 2004. Para chegar à conversa com Bittan foram precisos vários telefonemas prévios, e até a ajuda de um antigo ministro tunisino do turismo, René Trabelsi, judeu oriundo de Djerba, pequena ilha no sul da Tunísia, muito popular como destino de férias entre os europeus, incluindo portugueses, que no verão aproveitam os voos charter que demoram menos de três horas a partir de Lisboa.

Depois de uma primeira ida noturna a Hara Kbira, para tentar conversar sem sucesso com o grande rabino mas que serviu para conhecer o famoso restaurante Brik Ishak, regresso numa manhã bem cedo, com encontro marcado. Viajo num jipe e acompanhado por uma tunisina que me serve de tradutora do árabe para o francês. E depois de um telefonema para Haïm Bittan, a dizer que chegámos, vejo ao longe um homem a acenar. As longas barbas grisalhas ajudam-me a reconhecer a figura, que já tinha visto através de fotografias em reportagens. E a casa onde está, junto à porta, até fica mesmo perto do Brik Ishak, restaurante propriedade de uma família judaica com fama de fazer o melhor brik da Tunísia, uma espécie de crepe salgado, recheado com um ovo.

O grande rabino pede que subamos. Um lance de escadas exterior dá acesso a uma pequena sinagoga no meio do casario branco e azul como é regra em Djerba e um pouco por toda a Tunísia. Atravessamos a sala de orações e entramos numa sala que tanto serve para reuniões como de biblioteca. Há livros acumulados em estantes, muitos outros sobre a mesa, alguns ainda empilhados num escadote aberto. “Quando me perguntam onde estudei no estrangeiro para ser rabino, digo para olharem à volta”, declara o líder religioso, abrindo os braços e chamando a atenção para os milhares de volumes em hebraico que o rodeiam.

“Sempre tivemos muitos sábios em Djerba, estudiosos do judaísmo. Nenhum futuro rabino precisa de ir para fora estudar. Eu não precisei”, sublinha Haim Bittan, expressando-se em árabe, idioma que a comunidade judaica fala no quotidiano, até porque vive lado a lado com famílias muçulmanas. O hebraico é usado para fins teológicos e ensinado na yeshiva, a escola religiosa judaica, separada para rapazes e raparigas, que as crianças frequentam depois de assistir às aulas na escola pública tunisina, onde, aí sim, os dois sexos se misturam, como foi vontade de Habib Bourguiba, o pai da nação.

Quando a Tunísia se tornou independente da França, em 1956, Bourguiba dedicou-se a construir um país aberto, consciente da sua pertença ao mundo árabe-muçulmano, mas também orgulhoso das influências várias da sua história, como os berberes, os cartagineses e os romanos. E desde sempre foram dadas garantias aos judeus tunisinos de que pertenciam à nação, que se pretendia acima da pertença religiosa. Mas a criação do moderno Estado de Israel em 1948 foi seguida de represálias sobre as comunidades judaicas no mundo árabe, de Marrocos ao Iraque, e a Tunísia não conseguiu ser a exceção. Dos mais de 100 mil judeus há 75 anos, hoje restam apenas 1500, que o grande rabino explica concentrarem-se em Djerba, cerca de 1100, e depois outros 400, que vivem sobretudo em Tunis, a capital deste país de 12 milhões de habitantes.

Ao contrário da visita que fiz a Hara Kbira ao final da tarde, em que se viam crianças de kippa na cabeça a brincar e o barulho era o de uma rua movimentada, agora de manhã cedo o silêncio é quase total em redor. Sobre se teme a sobrevivência da comunidade, dada a atração para os jovens de emigrar para França, onde vivem 700 mil judeus, a maior comunidade na Europa, ou para Israel, Haïm Bittam diz que os piores tempos nesse sentido já passaram e que muitos que partem para o estrangeiro regressam à ilha: “há quem vá para a Europa para ser cozinheiro kosher, que é um trabalho muito bem pago pois pouca gente o sabe fazer como nós aqui. Mas depois de ganhar dinheiro voltam”. Contribui também para o otimismo sobre o futuro do judaísmo em Djerba a alta taxa de natalidade na comunidade. “Cada família tem no mínimo seis filhos, e às vezes mais de dez”, diz, entre risos, o grande rabino, ele próprio pai de oito. Calcula-se que em Hara Kbira metade dos judeus tem menos de 20 anos.

O atentado contra a Ghriba em abril de 2002 foi um dos primeiros com a marca jihadista depois do terror do 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington, com a Al-Qaeda a causar a morte a quase três mil pessoas nos Estados Unidos da América. Na época, o líder tunisino, Ben Ali, chegou a dizer que a explosão na sinagoga tinha sido acidental, um camião com gás, talvez receando o efeito negativo sobre o turismo, importante fonte de receita para a Tunísia. Mas uma investigação alemã, motivada pelo facto de muitas das vítimas serem dessa nacionalidade, comprovou mais tarde tratar-se de um ataque terrorista direcionado à mais antiga sinagoga de África.

Visitar a Ghriba hoje significa passar por soldados tunisinos armados com metralhadoras, que fazem a segurança no exterior. A sinagoga fica num outro bairro de Oumt Souk, Hara Sghira, agora também conhecido como er-Riadh. Terá pelo menos 2600 anos e a lenda diz que foi construída a partir de uma pedra do primeiro templo de Jerusalém. Depois de passar por blocos de cimento pintados de branco (mais uma medida de segurança) entra-se no recinto, onde do lado direito está o antigo caravanserai, hoje local de festa durante a peregrinação anual em maio, e do lado esquerdo a sinagoga propriamente dita, com uma sala de orações em estilo mourisco, a relembrar uma vez mais a confluência de tradições de árabes e judeus, sobretudo no Magrebe.

No décimo aniversário do atentado, em 2012, Moncef Marzouki, então presidente da jovem democracia tunisina (Ben Ali foi o primeiro presidente dos quatro presidentes derrubados pela Primavera Árabe), foi à Ghriba homenagear as vítimas e repudiar os atos terroristas em nome da sociedade tunisina. E apesar de o país ser um grande apoiante da causa palestiniana, a política oficial é fazer a diferença entre o sionismo, a ideologia que levou à criação de Israel, e o judaísmo, a mais antiga das chamadas religiões do livro. Durante a tal peregrinação em maio até mesmo os detentores de passaporte israelita podem entrar na Tunísia para ir à Ghriba. Recentemente, também o presidente Kaïs Saïed reafirmou o compromisso do Estado com os seus cidadãos de religião judaica.

Em Hara Sghira, apesar de os judeus serem já menos do que os muçulmanos, há marcas ainda muito claras da sua presença, como o mural onde se vê uma imagem de um homem judeu, de kippa, e junto a ele duas ânforas encostadas, uma com letras árabes, outra com letras hebraicas. Também existe um restaurante de brik, chamado Trabelsi, como o apelido do judeu que foi ministro tunisino entre 2018 e 2020.

Houcine Tobji, fundador do Museu de Guellala, tem uma explicação histórica para a força da implantação do judaísmo em Djerba, que não é só por causa da antiguidade. “Os ibaditas, uma minoria no Islão mas maioria em Djerba, tradicionalmente associaram os judeus à sua resistência aos que os atacavam de fora. Uns e outros têm origem nos berberes que foram os primeiros habitantes da ilha. Por um lado, governados por sábios, os ibaditas foram assim fiéis ao dito de não faças ao outro o que não queres que te façam a ti. E esta coexistência religiosa pôs os judeus a ajudá-los, e os judeus eram muito bons forjadores de armas, também muito bons pedreiros a ajudar nas fortificações”, sublinha o historiador tunisino.

A maior comunidade judaica num país árabe atualmente é a de Casablanca, megacidade marroquina, com 1500 pessoas, sendo que no total Marrocos terá 2500 judeus. Mas na Síria, onde recentemente morreu o chefe da comunidade de Damasco, já só haverá quatro judeus. Cálculos mais gerais, dão conta de 800 mil judeus a viver em 1948 nos países árabes, onde tradicionalmente estavam bem integrados graças à tolerância islâmica para com fiéis das outras duas religiões do livro. Marrocos teria então 265 mil judeus, a Argélia 140 mil e o Iraque 135 mil. A Tunísia, com cerca de 105 mil judeus, seria então o quarto país árabe com mais judeus, uma percentagem relativamente alta dada a população de apenas 3,5 milhões nessa época.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN