Começo por perguntar sobre a língua portuguesa. Tem futuro aqui em Timor?
Sem dúvida. Vemos pelos dados estatísticos. Em 1975, o último ano da colonização portuguesa, aqui eram menos de dez por cento que falavam português. E dez por cento é um número otimista. Depois veio
a ocupação indonésia, de 24 anos, e quando chegámos ao primeiro ano da independência, em 2002, não havia estatísticas, naquela altura, sobre quantos falariam português, mas na minha estimativa não podiam ser mais do que um por cento. Hoje, a estatística oficial aponta para cima de 40 por cento. Claro, obviamente, quando se diz falar português não é pessoas que falam bem e falam no dia-a-dia. Mas que entendem, que podem falar, embora muito tímidas, envergonhadas por falarem mal.

Mas à geração de dirigentes históricos – como é o seu caso, e também Xanana Gusmão, Mari Alkatiri ou Taur Matan Ruak – todos nós nos habituámos a ouvi-la falar um português perfeito. É por causa da vossa educação, que tiveram no tempo colonial, mas que era uma exceção?
Uma exceção. Fazemos parte daquela percentagem de dez por cento que eu mencionei, e essa pequena percentagem que falava português, grande parte agradecia-se à Igreja.

A Igreja Católica em Timoré que fazia a alfabetização em português?
A Igreja tinha a maior parte das escolas de ensino elementar em Timor. Aí em meados dos anos 1960 começaram a surgir mais escolas, mas antes dessa época havia apenas a missão católica em Soibada onde eu fui educado. Toda a minha instrução primária foi feita lá.

Em português?
Em português. Era obrigatório. E eu não dizia uma palavra aos seis, sete anos de idade quando para lá fui. A nossa mãe era timorense e em casa só falava tétum, embora falasse português.

Tétum é a sua língua materna?
Materna era tétum.

Não é habitual nos timorenses, não é? Nos timorenses geralmente o tétum é a língua franca, que todos sabem, mas há as línguas regionais.
Sim, há várias línguas. Mas agora o tétum é falado por 90 por cento da população. O tétum evoluiu, evoluiu até de uma forma desorganizada, improvisada. O tétum foi pedir emprestado, absorveu, milhares de vocábulos portugueses. Por exemplo, palavras como “parlamento” ou “democracia” o tétum foi buscar ao português. Tudo. Hoje você ouve o discurso de alguém a falar supostamente tétum e entende muita coisa. E portugueses que estão cá a viver durante algum tempo entendem uns 70 a 80 por cento. Daqui a mais dez anos, o que é que acontece? Porque estamos a assistir a um fenómeno interessante, que acompanho desde o ano 2000: a evolução de uma língua quase completamente nova. Nós testemunhámos e participámos na evolução dessa língua. A atual geração. O tétum está a desenvolver-se e não se desenvolve a partir dos linguistas e dos intelectuais e académicos.

É pela utilização do povo.
Do zé-povinho. É o zé-povinho que faz a língua.

E vai buscar léxico sobretudo ao português quando precisa?
Exato. Há textos oficiais, textos académicos, supostamente em tétum, em que 80 por cento, 70 por cento no mínimo, é português. Às vezes disfarça-se que não é português, disfarçar mas não no sentido literal. Por exemplo, “convite”. “Convite” é português. No tétum também é convite. Só que é com “k”. Em vez de “c” é “k”. Porque em bahasa indonésio o “c” lê-se “ch”. Seria “chonvite”. Então usa-se muito o “k” para substituir o “c”.

O bahasa indonésio no tétum deixou marcas?
Não, apenas em números, em algarismos. Na linguagem do dia a dia do tétum não.

Esta decisão da adoção do português como língua oficial depois do referendo de independência em 1999 foi entendida claramente como uma forma de o novo país se distanciar do bahasa indonésio e também da Austrália, no sentido da potencial influência do inglês. Foi muito discutido na altura? Foi mais ou menos consensual na liderança timorense?

Ao nível da liderança foi consensual. No congresso do CNRT, que era na altura órgão oficial da resistência, órgão unificador da resistência, no congresso de 2000, afirmou-se o português como língua oficial. Depois veio a ser consagrado na Constituição em 2001. Houve eleições para a Assembleia Constituinte, redigiu-se a Constituição e lá está o português estipulado como uma das duas línguas oficiais. O português e o tétum. Porque, ao fim e ao cabo, Timor-Leste tem vantagem sobre os países africanos de língua portuguesa, em que nenhum deles tem uma língua local consensual no meio das tribos com as suas línguas muito acentuadas.

Está a falar do tétum como língua franca?
O tétum, devido ao papel da Igreja durante décadas, sobretudo durante as décadas da luta da independência, mas também devido ao papel da resistência, expandiu-se rapidamente. Quando chegámos à independência, devia ser tipo 60 por cento, 70 por cento. Hoje praticamente 90 por cento fala tétum. Mas o tétum já com muito vocábulo português.

Mas na liderança o português ao lado do tétum foi consensual, era uma forma de defender a identidade timorense?
O português foi totalmente consensual. Por razões que não têm nada que ver com o que alguns idiotas dizem, que é saudosismo. Ninguém, nenhum líder sério, faz decisões por saudosismo de espécie alguma. Timor-Leste existe enquanto Timor-Leste pelas fronteiras, negociadas entre Portugal e a Holanda. Não existe porque antropologicamente existe um povo chamado povo timorense. Há muita similaridade étnica e cultural entre os povos de Timor-Leste com mais de 25 milhões de pessoas que habitam na chamada Indonésia Oriental.

Ou seja, similaridade não só com Timor Ocidental, que é indonésio, mas com as ilhas à volta.
Exato. Que é o grupo étnico melanésio. Timor tem dois grandes grupos étnicos. Um é o malaio-polinésio e o outro é o melanésio. E estas ilhas orientais da Indonésia são melanésias. Iguais à Papua-Nova Guiné, Fiji – não a parte da imigração indiana – e as ilhas de Vanuatu, antigas Novas Hébridas. São todas melanésias. Timor é isso também. Aqui a grande vantagem que Timor tem, também em relação às outras ex-colónias, é que a religião católica é 98 por cento. É a percentagem maior no mundo de uma população católica.

Ou seja, quando se fala das Filipinas como o grande país católico da Ásia é pelo número.
Pelo número.

Pela percentagem é Timor-Leste.
As Filipinas têm 80 e tal por cento de católicos. Em Timor-Leste, a percentagem católica é a maior da Ásia, mas também do mundo, maior do que a da própria Polónia, que é supercatólica, e maior do que a do Brasil. O Brasil é 50 por cento católico.

O catolicismo acabou também por moldar muito a identidade timorense.
A identidade timorense é o catolicismo e a língua tétum e as duas vêm de onde? Vêm da presença portuguesa. A fronteira física da dependência portuguesa é que definiu o povo de Timor-Leste. Porque antropologicamente não existia. É o povo desta ilha toda. O povo de Timor-Leste não é um conceito antropológico, é um conceito político. E que cabe neste espaço geográfico, resultado do tratado de limitação na fronteira entre Holanda e Portugal, a sentença arbitral de Haia do século XIX.

Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN