Ilustração: David Oliveira | Texto: Teresa Carvalho

Álvaro pegou na sua mala de ferramentas e saiu, deixando atrás de si o estrondo ruidoso da porta, atirada com toda a força de que foi capaz. Deixou também para trás duas jovens assustadas, e de ouvidos atentos aos sons que se seguiriam.

Pouco depois, o clic, clic, clic, incessante mas cuidadoso, dizia a Gabriela e a Sónia que o pai esculpia os seus bonsais. Como desejavam que o pai olhasse para elas com a ternura com que cuidava daquelas árvores em miniatura que eram o seu grande motivo de orgulho! Era a eles que Álvaro confiava os seus segredos, os sonhos e reclamações, que apaziguava as zangas que não sabia explicar. Era neles que Álvaro investia a sua capacidade de amar, e de quem não se conseguia separar. Sabia a sua origem, a sua história, os cuidados em cada fase do crescimento, quando era esperável que florescessem ou dessem fruto. Sentia-os como sendo a sua criação.

Com Gabriela e Sónia, Álvaro não percebia porque não respeitavam as suas decisões sobre o seu futuro, porque não agradeciam os seus esforços a criar bem-estar, porque tinham de contestar e dar a sua opinião, se era ele o pai. Só podia ser fruto da má educação que a mãe lhes dava…
Álvaro ia repetindo dia após dia o que sabia fazer: talhar a vida dos que o rodeavam, impondo o seu modelo, como sendo o único aceitável.

Um dia recebeu um convite da junta de freguesia para fazer um seminário sobre a formatação de bonsais.
Mesmo com vontade de recusar, Álvaro não se atreveu. Não haveria de dar motivos para ser criticado.
Para a sessão Álvaro levou consigo as três mais resistentes plantas, ilustrando as suas particularidades, os cuidados a prestar, os riscos ao crescerem, e mostrava tanta perícia e cuidados, que uma participante não resistiu a comentar:

– Se cuida assim dos bonsais, imagino como você será a cuidar das suas filhas!

Álvaro sentiu-se como a receber um choque elétrico. Tantas vezes que Gabriela o ofendia dizendo que ele “só sabia ser pai de bonsais”. Mas isso nunca fora motivo para refletir. Só para se enfurecer.
Mas hoje, aquela afirmação fê-lo acordar. Não, não cuidava das suas filhas. Não sabia quase nada delas. Isso eram responsabilidades da mãe! A ele cabiam tarefas verdadeiramente importantes. Nunca tivera tempo para brincar, porque os bonsais cresciam em número e em cuidados. Nem sabia o nome dos amigos delas. Será que tinham amigos? Como podia saber se nunca vinham a casa? – Ele nunca permitiria! Também nunca participou em festas da escola: eram demasiado infantis e coisas para senhoras.

Nessa tarde, depois da sessão, Álvaro foi instalar com todo o cuidado os bonsais que levara e visitar uma por uma todos as outras 98 plantas cuidadosamente acomodadas. Contudo, não lhes falou como sempre fazia. Passou em silêncio, acariciando-as, apenas, e escutando. De dentro de si, e dos bonsais, emergia uma voz de desafio:
– Porque não te importas assim com as tuas filhas?

Pela primeira vez, Álvaro percebeu que ser pai da Gabriela e da Sónia era muito mais do que cuidar de bonsais. E que a elas, ele não poderia “podar ou formatar”. Precisavam, sim, que ele as ajudasse a voar, tão alto quanto lhes fosse possível, no voo delas!
Pela primeira vez, Álvaro percebeu que mentia sempre que dizia que as suas filhas eram o que de mais precioso possuía. Para ser verdade, tinha que começar a alterar, já, as suas prioridades.
Percebeu Gabriela e Sónia quando lhe diziam que ele só sabia ser pai de bonsais: pediam-lhe que fosse um pai de verdade. Precisam de um pai de verdade! Cabisbaixo, numa atitude de humildade que não conhecia, agradeceu aos bonsais e dirigiu-se ao quarto das filhas, onde, com uma carícia desajeitada lhes garantiu: a partir de hoje, vocês têm um pai de verdade!