António ouviu o clique metálico do enorme portão que se fechava atrás de si. Não olhou para trás, movido por um medo irracional de voltar a ser obrigado a regressar àquele mundo onde estivera prisioneiro durante 12 anos. Olhou em frente. Sentiu-se aterrorizado. Estava livre. Era a realização do seu sonho, da mesma forma que se sonha com um mundo paradisíaco! Então, porque se sentia tão perdido?
Deste lado do portão, já começava a sentir o que era “ser só”. Todos os que conhecia afastaram-se de si desde o trágico momento em que a sua vida desabou. Olhou à volta. Tudo estava em silêncio, parado, paralisado, como ele se sentia. De súbito, de dentro de um carro estacionado, um braço acenou na sua direção. Não havia ninguém próximo: era mesmo para ele.
Caminhou inquieto até aquele aceno desconhecido. Susy e João, de sorriso escancarado saíram do carro e envolveram-no no abraço mais caloroso que alguma vez António recebera. Nesse momento, o pensamento parou. António só conseguia ouvir as batidas do coração, as suas e as de Susy e de João.
Recuperado da surpresa, António quis saber:
– Que fazem aqui num sábado de manhã? Há sessão hoje?
– Não António. Viemos receber-te! Não resistimos a festejar contigo o princípio desta tua nova aventura! E queremos garantir-te que “não estás só”! Podes contar connosco! E não resistimos a acompanhar-te àquele cacau de que nos falaste! – E todos riram de felicidade!
De perdido a confuso, António passou, como por magia, a sentir-se um homem aconchegado no calor de um abraço, absorvendo deslumbrado as novas paisagens que percorriam o ar fresco da manhã que irrompia por entre a janela aberta do carro, e a estranha sensação de liberdade, como se estivesse deleitado a planar, mas com medo de se estatelar.
Neste embalo, António entendeu como Susy e João traduziam na prática as sessões de desenvolvimento pessoal e religioso que organizavam no estabelecimento prisional, e acreditou neles. Na bancada da frente do carro, recordou os debates sobre a esperança, o perdão e o amor incondicional de Deus, e sobre a possibilidade dada a cada pessoa de recomeçar outro percurso em cada momento.
Recordou a sessão em que João e Susy convidaram o grupo a pintar numa tela a sua história futura, com cores de erros, mas também de aprendizagens, de conquistas e dos esforços, mesmo quando ninguém repara. Essa tela, António trazia na mala, para a colocar no quarto arrendado onde ia viver. Olhar a tela dava-lhe a esperança de que, um dia, o seu passado não atropelaria o seu sonho de andar erguido e de ser acariciado pelo sol.
João estacionou o carro. Em frente lá estava a pastelaria que António descrevia nas sessões, como o primeiro destino a visitar após a sua saída da prisão. Sentado à mesa, com uma chávena de cacau a aquecer aquele sábado de outono, acompanhado daquelas pessoas que não lhe exigiam nada e que aprendera a estimar, inundado por uma música de fundo feita de vozes de crianças e de gente em liberdade, estava pela primeira vez em 12 anos sem sons de fechaduras que bloqueiam, e a sua companhia não era feita de companheiros de cela.
Saboreou a chávena de cacau e sorriu, percebendo que, naquele momento, um sonho estava a ser realizado. Soube, então, que os anjos existem. E acreditou que estes anjos ao seu redor o ajudarão a substituir os pesadelos por sonhos de esperança e sono tranquilo, reconquistando todos os dias o direito aos sabores deliciosos da vida.
Crónica: Os anjos existem mesmo

Ilustração: David Oliveira | Texto: Teresa Carvalho







