“A Ucrânia esteve entre os lugares mais mortíferos da terra durante o século XX. Pelo menos quatro milhões de ucranianos morreram na fome do Holodomor na década de 1930, centenas de milhares na repressão estalinista que eliminou a elite cultural da Ucrânia e, em seguida, quase dez milhões durante a Segunda Guerra Mundial. São perdas gigantescas, considerando que toda a Ucrânia soviética tinha uma população de 29 milhões de pessoas, de acordo com o censo de 1926”, diz Yaroslav Trofimov, autor do livro ‘Um país sem amor’, inspirado na história da avó Débora, judia ucraniana, e que apesar de ser um romance nos dá pistas para perceber as raízes do atual conflito entre russos e ucranianos.
“Todos os ucranianos sofreram no Holodomor e na repressão, mas, obviamente, os judeus ucranianos foram o alvo direto do extermínio nazi no Holocausto. De facto, um dos primeiros grandes atos do Holocausto foi o massacre de Babyn Yar, em Kiev, em 1941. A razão pela qual grande parte dos judeus ucranianos sobreviveu à guerra – incluindo Débora e incluindo a família do presidente Zelensky – é que as mulheres e as crianças conseguiram fugir para Leste, para as zonas não-ocupadas da URSS, enquanto os homens combatiam no Exército Vermelho”, acrescenta Trofimov, que nasceu em Kiev, em 1969, e é jornalista do ‘Wall Street Journal’.
País de maioria cristã ortodoxa, com crescente força de uma Igreja autocéfala que rejeita a autoridade do Patriarca de Moscovo, a Ucrânia conta também com dez por cento de católicos. Existe ainda uma minoria muçulmana, os tártaros. A comunidade judaica, à qual pertence o presidente Volodymyr Zelensky, não chega hoje a ser um por cento da população.
Sobre se esses tempos terríveis na Ucrânia pós-Revolução Bolchevique e também durante a Segunda Guerra Mundial que conta no livro aconteceram igualmente noutras zonas da União Soviética, o jornalista explica que “embora outras partes da Rússia também tenham sido devastadas, como celebremente Estalinegrado, o peso da guerra foi sentido sobretudo pela Ucrânia e pela Bielorrússia – que foram completamente ocupadas pelos nazis e serviram como principais campos de batalha. Afinal, metade da população de Kiev foi morta entre 1941 e 1943. Quanto ao Holodomor, também houve períodos de fome na época no Cazaquistão e nas zonas cossacas do sul da Rússia, que tinham uma grande população étnica ucraniana. Em todas estas áreas, Moscovo tinha um plano político – e genocida – para destruir a população rural potencialmente rebelde”.
Ainda sobre a dureza de Moscovo em relação à Ucrânia, e até que ponto a construção da nacionalidade ucraniana colide com a influência da cultura russa entre os próprios ucranianos, Trofimov considera que essa “é sempre uma questão nos países que emergem do colonialismo – o senhor colonial deixa uma marca, e a Rússia foi um senhor colonial particularmente brutal. A língua ucraniana foi praticamente proibida durante a maior parte do século XIX, e a cultura e a literatura escritas ucranianas sobreviveram
em grande parte graças ao facto de um canto do oeste da Ucrânia, incluindo a grande cidade de
Lviv/ Lemberg, se encontrar na Áustria, onde os Habsburgos permitiam a impressão de livros ucranianos e o ensino universitário em ucraniano. A mensagem de Moscovo em épocas posteriores era que a cultura ucraniana se destinava ao folclore e aos contos de aldeia, e que nada de moderno ou sofisticado podia ser expresso pelos ucranianos”.
O livro descreve a parte ocidental da Ucrânia, que fez parte do Império Austríaco e depois integrou a Polónia, como sendo particularmente avessa ao regime soviético. Mas esta, diz Trofimov, já não se destaca hoje pela hostilidade à Rússia: “Partes ocidentais da Ucrânia, particularmente a antiga Galícia austríaca, têm sido referidas como o Piemonte ucraniano, uma região que desempenhou um papel descomunal no movimento independentista. Mas a guerra atual mudou as coisas. A grande maioria da morte e destruição nos últimos três anos e meio ocorreu nas áreas predominantemente de língua russa do leste da Ucrânia, e é aí que o ódio pela Rússia é mais profundo. Não é de estranhar, dado que milhões de pessoas perderam as suas casas, amigos ou familiares.”
O presidente russo, Vladimir Putin, tem argumentado que foi a necessidade de “desnazificação” da Ucrânia um dos motivos da guerra, e aponta o dedo a grupos nacionalistas que têm como herói Stefan Bandera, que chegou a ser um aliado dos alemães contra o Exército Vermelho. Trofimov admite que se trata de uma figura altamente controversa, e relembra que “embora tenha colaborado com os nazis em alguns momentos, também é verdade que passou a maior parte da Segunda Guerra Mundial num campo de concentração alemão, porque os nazis não tinham qualquer interesse numa Ucrânia independente e planeavam, a longo prazo, o extermínio dos ucranianos. As pessoas na Ucrânia gostam de dizer, corretamente, que os ucranianos fazem parte do Mundo Ocidental e partilham valores ocidentais. Infelizmente, os valores ocidentais dominantes em 1941 eram de nacionalismo fascista, fosse o de Hitler, o de Mussolini, ou o de Pétain – fosse o de Bandera. A razão pela qual Bandera é visto por alguns ucranianos como um herói não é pelo que fez na Segunda Guerra Mundial, mas pelo que os seus seguidores fizeram depois da guerra, na insurgência anti-soviética que durou quase uma década”.
Este ‘Um país sem amor’ passa-se essencialmente nas décadas de 1930, 1940 e 1950, um tempo que parece remoto, pois a Segunda Guerra Mundial acabou há 80 anos e a própria URSS desagregou-se em 1991. Mas o jornalista do ‘Wall Street Journal’ considera que “é impossível compreender a motivação dos ucranianos que hoje resistem à Rússia sem compreender este passado. Praticamente todas as famílias ucranianas descendem de avós ou bisavós que sobreviveram àquele picador de carne da história. Esse passado está-nos nos ossos, e é um passado que a Rússia quer trazer de volta. Não é por acaso que a primeira coisa que os soldados russos fazem quando ocupam uma cidade ou vila ucraniana é destruir o monumento às vítimas da fome do Holodomor. Os ucranianos sabem, pela sua história, que, por mais sangrenta e custosa que seja a resistência à Rússia, a rendição traria muito mais mortes e muito mais destruição”.
Questionado sobre se é possível que a Ucrânia saia vitoriosa contra um invasor tão poderoso, Trofimov responde assim: “Bem, as tropas russas deveriam estar em Kiev em março de 2022 e não estão, pois não? Acho que tudo depende da forma como se define vitória. A sobrevivência da Ucrânia como um país totalmente independente que ainda controla 80 por cento do território enquanto luta sozinho contra uma superpotência nuclear – isso já é uma grande vitória. Não conheço muitos países que teriam sido capazes de enfrentar a Rússia numa guerra em grande escala e não serem derrotados em semanas.”
Repórter em conflitos vários, desde o Afeganistão ao Médio Oriente, é autor de livros baseados nessas experiências de jornalismo de guerra, como ‘Faith at war’, ‘The siege of Mecca’ e ‘Our enemies will vanish’. Mas desde 2022 cobre uma guerra que se passa no país onde nasceu: “obviamente é muito mais difícil escrever sobre a sua própria cidade natal ser bombardeada. Mas penso que, de certa forma, esta é a guerra mais fácil de cobrir, porque tem uma clareza moral que poucos conflitos, se é que houve algum, tiveram desde a Segunda Guerra Mundial. A Rússia lançou uma agressão colonialista não-provocada contra um país que apenas queria ser deixado em paz e que se tem defendido bravamente.”
Traduzido para várias línguas, este ‘Um país sem amor’ tem sido descrito como um romance com mensagem política. O autor, por seu lado, afirma tratar-se de “um romance sobre uma jovem cujas esperanças e aspirações são frustradas pelo encontro com as forças da história e que aprende a sobreviver e a manipular circunstâncias impossíveis. A sua mensagem central é a análise do custo da sobrevivência – até que ponto estamos dispostos a ir para nos protegermos a nós próprios e àqueles que amamos? Não se trata apenas da Ucrânia – as pessoas, em muitas outras circunstâncias, têm de lidar com desafios semelhantes. Na verdade, o livro foi escrito para pessoas que podem não ter qualquer interesse na Ucrânia como tal. Mas, obviamente, conta também a história da Ucrânia, que era uma verdadeira terra incógnita para muitos europeus antes de 2022, através da vida de Débora”.
Texto: Leonídio Paulo Ferreira, jornalista do DN








