Ilustração: David Oliveira | Texto: Teresa Carvalho

Dona Lúcia! Será que eu podia falar com a senhora?
Lúcia viu um rapazinho mal trajado, cabelo crescido, expressão dorida.
– Em que posso ajudá-lo?
– Já não me conhece, dona Lúcia!? Sou o João, o “pequenote” do lar, lembra-se?
João, o pequenote, agora tornado “um homem” deixou-se aquietar no calor sempre viciante de um abraço.
– Dona Lúcia, estou aflito, mal posso andar. Há uma pomada que me faz bem mas não consigo comprar. Pensei que talvez a dona Lúcia soubesse como ajudar.
– Claro que não podes ficar com dores por falta de uma pomada!

Lúcia, rapidamente encontrou forma de assegurar o valor da pomada e de um pouco mais.
– Já comeste hoje, João?
– Não, mas vou almoçar na associação do bairro. Eu podia ir ao “Cantinho do Pobre” que eles dão as refeições todas, mas é preciso ficar em fila na rua e eu tenho vergonha. Passa tanta “gente normal”, e a gente ali… Sei que não sou ninguém nem sou mais do que os outros da fila, mas aquilo faz-me sentir por baixo. E eu não preciso comer muito… No bairro, o almoço é numa sala onde ninguém precisa ser visto e recebem a gente com um sorriso. Ali, a pessoa às vezes até se sente como se fosse importante!
– E onde vives, João?
– Estou num quarto. Não tem muitas condições, que não tem janela e eu tenho de andar curvado por causa do teto ser baixo, nas águas furtadas, mas é o que o rendimento social dá para pagar.

– Não trabalhas?
– Às vezes consigo algo, mas é raro aparecer. Como não tenho telemóvel, quando me querem chamar dão recado a um amigo, que às vezes não consegue avisar a tempo.
– E não tens mais ninguém, da tua família, por exemplo?
– Sabe, dona Lúcia, o melhor tempo da minha vida foi quando estive no lar. Só que não soube aproveitar! Eu pensava que aquilo ia durar para sempre! Mas depois tive de sair – foi um choque. A minha família, é cada um para o seu lado. E eu fiquei sozinho. É triste. É o que é mais triste, estar sozinho!.

Continuaram a conversa à mesa de um café, com um pequeno almoço ligeiro. Antes de sair, comovido, João agradeceu a Lúcia por o ter convidado para uma mesa de café, sem vergonha de estar na sua companhia. Ele, com ela, não sentiu vergonha e não se sentiu pequenino.

No dia seguinte, João, o pequenote, voltou a procurar Lúcia.
– Vim aqui hoje, dona Lúcia, para agradecer o dia de ontem. Já ando melhor. E quero mostrar o que comprei.

Penso que vai ficar chateada, porque isto foi um bocado caro, mas é quentinha e é nova, mesmo só para mim. Depois comprei produtos de higiene e cortei o cabelo, porque no “Cantinho do Pobre” não fica muito bem.

A expressão de João era um misto de vaidade por se sentir bonito e a ansiedade de quem espera censura por ter “ousado” comprar uma camisola nova.

Lúcia percebeu o seu receio e olhou João com ternura. Quantos elogios este rapazinho merecia. Quanto mimo lhe fora roubado precisava compensar… E foi isso que fez: aconchegou-o no tal abraço que derreteu por instantes os medos de João.

A sua honestidade mostrou a Lúcia o tamanho dos pesos que amachucam quem se sente e está “na margem”, mas destacou também o mundo desconhecido da grandiosidade humana aí existente.

João, o pequenote, possui essa grandiosidade – não sabe. Precisa que alguém lha mostre. Até esse dia, está lá, na margem. Quem vem tirar o João da “margem”?