Ilustração: David Oliveira | Texto: Teresa Carvalho

Dora veio à cidade. Estes passeios raros, passando pelo verde com cheiro a vida renovada, dão-lhe um colorido
a liberdade e evasão do dia a dia cansado. De cansaço tem sido feita a vida de Dora: cansaço de ter vivido um casamento que a esfarrapou no corpo e na alma; cansaço de ter apostado em outras relações que esperava amorosas e que só vieram enxovalhar a sua crença no amor; cansaço de ser mãe sem saber sê-lo, e depois ver a sua Leonor crescer sem a saber orientar, acolher, amar, ou mesmo fazê-la sorrir de verdade; um cansaço penoso e culpado pelos anos em que esteve agrilhoada ao álcool, esperando afogar as suas dores e os desesperos que invadiam a sua mente e repetidamente a convenciam de que ela, Dora, era apenas “nada”, “ninguém”. Foi assim durante muitos anos. Dora resumia a sua história a um sentir culpado de sabor amargo e triste de existir.

Mas hoje, num banco da cidade, com 35 anos e de mão dada a Bruno, Dora é uma mulher com uma mão cheia de afirmação e esperanças e um coração que fala de gratidão. O cansaço de que falou, esse, pertence ao passado. É uma pessoa nova. Já não interessa o negro da sua história, nem a hepatite, a diabetes, as dores, o trabalho duro… Nada disso lhe rouba a alegria de hoje. A alegria de saber que afinal ela é “alguém!” Descobriu-o quando a sua mãe, a sua irmã e o seu cunhado não desistiram de si: nunca desistiram de si.

E nunca lhe permitiram que ela desistisse! Num tempo em que a vida dela se resumia a “destruir-se”, eles impuseram-se em forma de barreira entre ela e o álcool e desmontaram as peças dos fantasmas que a aniquilavam. Não se importaram com o tempo que demoraria. Dora importava, não o tempo. E Dora sentiu a força desse amor. Venceram! Todos eles! Desde então, nunca mais o álcool teve poder sobre si.

Depois, foi um crescendo de reconstrução de um mundo novo: com o apoio deles, libertou-se de um casamento de destruição. Por causa do acolhimento deles, não lhe faltou teto nem comida nem calor ou aconchego. Pela aposta e determinação deles, acreditou que seria capaz de descobrir e conquistar o seu tamanho e o seu lugar.
Mas foi quando se aproximou de verdade da sua filha, quando teve coragem de querer ver quanto Leonor fora atingida por este seu percurso tempestuoso, que viu brotar dentro de si a certeza e a determinação transformadora que a havia de salvar: venceria tudo o que fosse necessário conquistar para a trazer de volta a si e desenhar-lhe um sorriso que suplantasse os dias em que lhe derrubou os sonhos e não a soube fazer sorrir.

Dora levantou-se, cresceu, voltou a acreditar em si, nos outros, na vida – só possível por causa do amor que recebeu e pelo amor em que apostou e que alimentou. Tal como Dora no passado, Leonor anda hoje à deriva, provocando e aderindo a riscos que a deixam machucada e bloqueiam sonhos de crescer. Dora fica próxima, atenta, acolhedora, entendendo os movimentos doridos e intranquilos da filha. Entende os fantasmas que ela própria povoou na história de Leonor e quer ajudá-la a desmontá-los, como um dia fizeram consigo. E tal como um dia ouviu, Dora repete a Leonor: “Eu nunca vou desistir de ti e nunca vou permitir que tu o faças!”. No relato da sua história, Dora, de coração agradecido e uma mão cheia de esperanças, agradece as suas conquistas, o amor que as permitiu e a força que ele faz brotar. Agradece já as conquistas da sua Leonor… as que hão de chegar! Hão de chegar, sim, porque também Leonor descobrirá o tamanho da força do amor.