António partira há muito. Tinha 14 anos quando se despediu dos pais e dos irmãos. Na bagagem, com quase nada, escondia sonhos para desbravar numa terra que só conhecia pelas cartas do tio que o acolheria. No seu sonho, lá longe, nada lhe faltaria. Regressaria ali, àquela casa, com o fruto do seu sucesso e receberia o abraço da mãe e o do pai e de todos, orgulhosos do homem em que ele se tornara.
Foi por este sonho que António se deixou guiar e reerguer nos desalentos durante os longos anos de distância. Trabalhou duro, sofreu dores da saudade, assustou-se sozinho… mas tinha um sonho para realizar. Cresceu. Conheceu a Dalila, vieram os filhos, o negócio prosperou: era abençoado. A imagem de Nossa Senhora, que trazia sempre consigo desde o dia em que a mãe, ao despedir-se, lha metera na mão, era uma companheira de todas as horas a quem se agarrava sempre que a dificuldade se agigantava. Mas hoje, António olha para trás. Percebe que hoje, mais do que ontem, precisa que a sua Nossa Senhora não o deixe ceder à tentação de desistir.
Chegar de mãos vazias, pedir acolhimento à família como se nada tivesse construído, significa derrubar a conquista de uma vida inteira. Mas, não via alternativa: o empreendimento com que sustentara a família estava agora inativo depois de vandalizado. Com a saúde a deteriorar-se e sem condições de tratamento, decide regressar a casa dos pais, onde já não sente ser o seu lugar.
A sua Dalila acompanha-o, mas não os filhos e os netinhos. Como suportar a distância? A distância, a perda, a dor, a saudade… tudo a repetir-se, mais uma vez! Maria, a mana (“mana” por ser a primeira, a que cuidou de todos) e os irmãos estão à sua espera no aeroporto. Desta vez o brilho dos olhos não era de felicidade.
António sente-se envergonhado, caído, pedinte. Na bagagem não traz prendas como sempre fazia. Traz memórias dos que ficaram lá longe, à espera que a situação se altere. Os braços acolhedores dos manos não dissolvem a desesperança que o vem vencendo.
Instala-se com Dalila na casa dos pais. Aí, a mana Maria, sempre risonha, cuida da irmã Isabel, acamada há dez anos. Passam a ser quatro lá em casa. António tem 70 anos e nem de reforma beneficia. A sua Dalila não tem condições para trabalhar. Como viverão? Maria percebe quanto António e Dalila sofrem. Não pode tirar-lhes a dor, mas pode apaziguá-la. Esta passará a ser a sua principal tarefa. Conta com os irmãos para a completar.
Um mês depois, António e Dalila já são ajuda preciosa nos cuidados a Isabel. O projeto de aumento da casa dos pais está em fase de aprovação. Dará maior conforto a todos. A vida renasce e António e Dalila tornaram-se o polo e a razão imediata de encontro familiar, trazendo novos desafios e novo vigor. Maria tem agora tempo, muito mais tempo e vontade para fazer as suas especialidades culinárias, para plantar as hortaliças, cuidar das flores.
Aos poucos, Dalila vai abraçando a vida desta gente simples capaz de dar tudo, e adota esta casa como o cantinho caloroso que a recebe de braços abertos. António, apaziguado das perdas, reencontra-se com uma parte da história que também lhe pertencia, e com vontade de, também aqui, ser construtor, aprendiz e professor.
Afinal, não repete a história passada: dá-lhe, sim, continuidade, com um fôlego novo, renascido no bálsamo fortificador de uma família que tem sempre lugar para acolher e abraçar quem chega, independentemente de ser para partir ou para ficar.