Júlia Bacelar – Instituto das Religiosas Adoradoras e Membro da Comissão de Apoio à Vítima e Tráfico de Pessoas (CAVITP)

O tráfico humano é uma realidade extremamente complexa, multifacetada, sombria. Trata-se de um fenómeno oculto, que se alimenta e desenvolve no lamaçal das mafias, no secretismo do crime organizado, sustentado em cumplicidades obscuras. Segundo a definição das Nações Unidas (ONU), o tráfico de seres humanos consiste em aliciar, enganar, transportar alguém (…) com fins de exploração e obtenção de lucro. Efetivamente, não se traficam pessoas para fazer turismo, para promover, para empoderar e proporcionar uma vida melhor. A única finalidade do tráfico humano é a exploração das vítimas. Apenas e só. E concretiza-se de muitas maneiras e em diferentes contextos, tais como: na prostituição forçada, no serviço doméstico, na extração de órgãos, entre outras formas. A gravidade deste crime consiste em reduzir os seres humanos a meros objetos de mercadoria, sujeito às leis do mercado da oferta-procura, com preço-validade.

O tráfico de seres humanos é uma página negra na história de muitos países, incluindo, Portugal, naturalmente. Porém, neste milénio, agravou-se significativamente a nível global. O ex-secretário da ONU, Kofi Annan, dizia: “neste drama humano nenhum país tem as mãos limpas”. Assim sendo, não há sociedades imunes ao Trafico de Seres Humanos. Em grande medida, a globalização veio despoletar o crescimento e o agravamento desta realidade. Hoje como ontem, trata-se de um negócio altamente lucrativo, que segundo os analistas, é tão ou mais rentável que o da droga ou até mesmo o das armas.

O Trafico de Pessoas tem a ver com tudo e com todos. É um problema endémico nas nossas sociedades. Embora, aparentemente, não o pareça, na verdade ele está de tal modo enraizado no tecido social no seu todo (familiar, empresarial, financeiro, desportivo, artístico, religioso, turístico) que quase se banalizou e normalizou. A exploração entranhou-se no quotidiano das nossas vidas, em muitos dos ambientes que frequentamos, urbanos e rurais, pobres e ricos. Traficantes e traficados vivem ao nosso lado, usufruindo da cumplicidade, indiferença e ingenuidade social. Todos somos contra a escravatura. Mas na prática isso não se verifica. Há muitos comportamentos sem escrúpulos onde impera o ‘vale tudo’ com tal de que dê lucro, prazer e sirva os interesses. Na base, há sempre um total desrespeito pelos Direitos Humanos

É um fenómeno com ‘muitas pontas por onde se lhe pegue’. Na origem, em princípio, poderão estar situações de pobreza acentuada, regiões onde há conflitos armados, desastres ambientais, regimes políticos ditatoriais, países com políticas desastrosas que provocam e alimentam as desigualdades sociais, entre outros. As pessoas vítimas do tráfico têm todas elas uma história muito sofrida e de enorme vulnerabilidade. E é precisamente esta circunstância, unida à atual facilidade da mobilidade internacional que favorece a atividade dos traficantes, das redes transnacionais da criminalidade organizada para a aliciar as vítimas com promessas de realização dos seus legítimos sonhos. Uma vez apanhadas nas redes, muito dificilmente de lá podem sair; romper a teia é uma ‘missão quase impossível’. Há algumas que o conseguem fazer se ajudadas por organizações.

O Estado português criou, atempadamente, uma legislação pertinente para a prevenção, punição do crime e assistência às vítimas do Tráfico Humano. Há recursos e há instrumentos legais suficientes. Porém, dado tratar-se de uma realidade oculta, perversa e escorregadia…, apenas se conhece o que vem à luz do dia. Há situações extremamente sinuosas que passam desapercebidas aos nossos olhos. Acresce, por outro lado, que as próprias vítimas não se assumem como tal; assustadas e ameaçadas, permanecem na exploração laboral e/ou sexual, sem poder nem saber a quem pedir auxílio. Inclusive, por vezes, chegam a achar ‘normal’ a exploração a que estão sujeitas. É preciso um combate firme, abrangente, sem tréguas, a nível governamental e de toda a sociedade civil: religiões e associações culturais, paróquias, escolas, etc. Precisamos de olhar para este fenómeno com uma visão sistémica, ou seja, ter consciência de que este tema ‘mexe com tudo e com todos’. Nunca é demais insistir neste aspeto. De nada serve “assobiar para o lado”. A indiferença só ajuda a que a exploração das vítimas seja mais sofisticada e continuada.

Para nós católicos, deve inquietar-nos a pergunta da Bíblia: “Que fizeste do teu irmão? Onde está ele?”. Ninguém pode esquivar a resposta a esta interrogação. Em 2012, o Papa Bento XVI disse: “O Tráfico de Pessoas é um crime contra a Humanidade”. E é assim que este fenómeno deve ser visto. Por seu lado, o Papa Francisco tem feito, insistentemente, uma condenação acérrima desta escravatura moderna, não poupando na dureza das palavras condenatórias. Repetidas vezes apela à coordenação de esforços na luta pela erradicação deste ‘’flagelo dos nossos dias…uma ferida aberta no coração da Humanidade”

Como Igreja, necessariamente, temos que incidir na mudança de mentalidades: os seres humanos não são objetos de consumo, de abuso, de exploração. E contrariar a ideia de que ‘tudo é consumível, descartável’. Tarefa árdua que exige conversão e indignação! Somos ‘pequenas luzes’ no meio da escuridão dos dramas e da humilhação abjeta a que as vítimas são submetidas. É preciso visibilizá-las, valorizar a sua Dignidade Humana e respeitar os seus direitos.

Texto: Irmã Júlia Bacelar – Instituto das Religiosas Adoradoras e Membro da Comissão de Apoio à Vítima e Tráfico de Pessoas (CAVITP)