“Entrem, entrem … cuidado para não tropeçarem”. As palavras de Maria João, mulher franzina, de gestos delicados e discurso confuso, fazem eco na escadaria do prédio vazio, nas proximidades do Jardim do Carregal, na cidade do Porto. É uma mulher amargurada, aquela que nos guia até ao segundo piso, iluminando os degraus com uma pequena lanterna, que emana um feixe de luz tão ténue, como débil parece estar o futuro da mão que a segura. As sensações confundem-se com sentimentos. Predomina o odor a casa antiga e abandonada, intriga o ranger do piso em madeira, nauseiam os vestígios de rastejantes e roedores. Mas é a história desta mulher de 55 anos, outrora uma senhora da classe média, que mais impressiona.

Fruto de um passado errante, que se furta a pormenorizar, Maria viveu algum tempo na rua. Sem fontes de proveitos, conseguiu o Rendimento de Inserção Social (RSI) e conseguiu também alugar o pequeno quarto, onde vive há ano e meio, mais mês menos mês. É um espaço exíguo, com sinais evidentes de humidade, praticamente sem calafetagem, cheio de restos do tempo que passa em solidão e de perigosos pedaços de estuque, prontos a soltar-se a qualquer momento. Mas é o seu porto seguro, onde pode guardar as suas “coisinhas”, onde pode assegurar a higiene diária, onde pode dormitar, onde pode recordar sonhos do passado e enfrentar pesadelos do presente. Em julho do ano passado, deixaram de lhe aceitar o pagamento da renda. E acha que já lhe deram uma ‘ordem de despejo’. Mas não tem a certeza. O certo é que, no exterior do edifício, está já afixada a placa de uma imobiliária de imóveis de luxo, anunciando a venda do prédio. O que virá a seguir é uma incógnita para Maria João. “Olhe, está tudo à venda, está a ver?”, aponta a inquilina, mostrando a quantidade de placas, visíveis em grande parte dos imóveis daquela zona. “Estão a mandar as pessoas para fora do Porto. Isto agora é tudo só para os estrangeiros. Eu não quero ir para um albergue, mas também não tenho capacidade para pagar 300 euros por um quarto, que é praticamente o que estão a pedir por aí”, lamenta-se, enquanto tenta recompor-se de mais um acesso de choro: “Desculpe, mas eu estou com muito medo do que vai ser o meu futuro”.

Processo de “gentrificação”
O caso de Maria João é apenas mais um, num lote de tantos outros, apanhados de surpresa por um processo de regeneração urbana dos grandes centros, a que o geógrafo Luís Mendes chama de “gentrificação”. Em suma – explica o investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa – o que já aconteceu em muitas capitais europeias, está a acontecer em Portugal. E o Porto não ficou indiferente a esta oportunidade turística e imobiliária. O capital privado deixou-se cativar pelos bairros tradicionais dos centros históricos, muitos dos imóveis foram transformados em hostels ou unidades de alojamento local, os preços imobiliários encareceram e as classes populares foram confrontadas com ordens de despejo inusitadas. Grosso modo, conclui Luís Mendes, “entram os ricos e saem os mais pobres e vulneráveis”.

“A minha casa ardeu em junho do ano passado, estive em casa de pessoas amigas, depois fui para casa de uma sobrinha. Mas ela despejou-me e eu tive que vir para a rua, porque a Câmara não tem casa para me dar.
O subsídio por doença e o rendimento mínimo dão para comer à noite, mas não dão para a pensão. Eles pedem perto de 250 euros por mês e não dá”, confessa António Jorge, 54 anos, enquanto se ajeita nos cobertores, para enganar o frio agreste de uma noite de abril. Revela que é transplantado renal, que sempre trabalhou na lavoura (“lá em Gondomar”), que não tem filhos, e que por isso resolveu ir experimentar a sorte no Porto. O seu destino foi igual ao de tantos outros, que se atiram – ou são atirados –, sem rede, para uma vida na rua. De repente, é como se tivesse entrado numa floresta, mas de betão. Vê-se obrigado a recorrer à caridade para poder tomar um banho, para ter uma sopa quente, para falar com alguém que o escute. Até os cobertores tem que esconder durante o dia, para assegurar o aconchego da noite.

Muitos destes sem-abrigo e sem-teto, segundo os responsáveis das equipas de voluntários que lhes prestam apoio, têm o acompanhamento da Segurança Social. O problema é que nem a Segurança Social escapa à voracidade do investimento urbano. E o resultado é bem visível à noite: nos vãos de escada dos edifícios públicos, debaixo de uma ponte, num jardim público, ou nas colunatas de uma qualquer instituição bancária.
Confrontada com este problema, Paula David, presidente dos Solidários Missionários da Consolata (SMC), não tem dúvidas na resposta: “Há mais pessoas na rua. Antes, a Segurança Social conseguia quartos por preços razoáveis, agora isso não acontece”, desabafa a voluntária, mostrando-se identificada com a questão da explosão imobiliária na cidade do Porto, fruto de uma intensa procura turística.

Preços proibitivos
Gonçalo Alves tem 53 anos. Os últimos seis passou-os a vaguear pelas ruas da baixa portuense. Quando encontra um quarto a preço compatível com os seus rendimentos ocasionais, deixa de aparecer nos locais por onde passam “as carrinhas” com uma refeição quente, um saco com doces e salgados, um cobertor, alguma roupa e uma disponibilidade muito grande para ouvir e tentar ajudar. Alves não é de muitas falas. Recusa revelar onde esconde o ‘vistoso’ colchão que encontrou na via pública, durante as horas do dia, mas aceita partilhar parte da sua história, e da sua experiência com os efeitos da pressão imobiliária.

“Eu trabalhava nas obras mas fiquei sem emprego. Às vezes arranjava quarto, mas agora é muito difícil, dizem que é por causa dos ‘hostéis’ ou isso do alojamento local. Ainda há dias me pediram 300 euros… Como é que a gente pode dar 300 euros por um quarto?”, interroga-se este ex-trabalhador da construção civil.
Segundo um estudo divulgado recentemente pela Universidade Católica Portuguesa (UCP), a pressão do Alojamento Local (AL) na baixa da cidade do Porto apresenta “um elevado grau de concentração”, com valores que atingem “o dobro” dos verificados em todo o município. “Observou-se uma elevada ocupação por AL de habitação previamente existente o que, intuitivamente, reforça a apreensão”, referiram, nas conclusões gerais, os autores da investigação. Com a mudança de ocupação urbana, através da transformação dos edifícios em locais de alojamento turístico, se já era difícil encontrar um quarto para pessoas sem-abrigo, pelo seu perfil associado normalmente aos problemas afetivos, perturbações mentais, dependência do álcool ou de drogas, esta tarefa revela-se agora praticamente impossível.

Medidas de contenção
A FÁTIMA MISSIONÁRIA tentou perceber como é que o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) do Porto está a lidar com este problema, mas sem sucesso. As questões enviadas ao coordenador da plataforma e vereador da Câmara Municipal do Porto com os pelouros da Educação, Habitação e Coesão Social, Fernando Paulo, foram reencaminhadas para o Gabinete de Comunicação da autarquia, que também não respondeu. Recorde-se que o NPISA congrega e coordena “as entidades ou organismos do setor público, nomeadamente os tutelados pelos membros do governo nas áreas do emprego, segurança social, educação, saúde, justiça, administração interna, obras públicas e ambiente, cidadania e igualdade; e todas as entidades com intervenção na área que desejem estabelecer um trabalho articulado e integrado” na identificação e apoio às pessoas sem-abrigo, como pode verificar-se na página digital do núcleo.

Em reunião do executivo municipal, porém, e em reação ao estudo da Universidade Católica, o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, garantiu estar disposto a implementar “medidas de contenção” para limitar o alojamento local no centro histórico da cidade. O projeto, segundo o vereador com a pasta do Turismo, Ricardo Valente, citado pela agência Lusa, deverá ser apresentando durante este mês de junho.
Até lá, e na ausência de respostas oficiais às preocupações de quem trabalha para minimizar o sofrimento de quem se vê agarrado a uma vida na rua, fica no ar o desabafo de Gonçalo Alves: “Alguns deviam ter a experiência que a gente tem na rua para darem o valor”.

Texto: Francisco Pedro / Fotos: Ricardo Graça