A última vez que visitei o Quénia, contava encontrar um país agitado por tensões de natureza tribal. Os rumores recentes, a continuar uma linha de acontecimentos dos últimos 12 anos na cena política, era isso que faziam prever. Mas não. Pelo contrário, surpreendeu-me a calma e serenidade das pessoas. O número um da oposição, Raila Odinga, que meses antes ameaçava declarar-se como vencedor das últimas eleições e portanto Presidente legítimo do país, aparecia agora na televisão e nos jornais, calmo e sorridente, na companhia das personalidades nacionais e do continente africano. O seu adversário político e atual Presidente em exercício, Uhuru Kenyatta, agora no seu segundo mandato, conseguiu a reconciliação ou tréguas ao obter para o pretendente uma posição de relevo, pelo menos com boa exposição e visibilidade, na orgânica da Organização da Unidade Africana. Esta acalmia, porém, pode ser sacudida à medida que se aproximam as próximas eleições, para as quais os presumíveis candidatos já começam a acotovelar-se.

Denúncias de corrupção
Durante dois meses, pude acompanhar o trabalho dos dois jornais diários de maior circulação no país, que pareciam andar ao desafio a ver qual é que trazia mais denúncias de casos de corrupção. A forma como o relato era feito e os nomes dos implicados expostos, evidenciava uma verdadeira liberdade de imprensa. Era clara a função crítica e moralizadora, pelo menos no tom. Mas nunca se podia seguir o desenrolar dos casos após a denúncia pública, porque bem cedo a atenção era desviada para novos casos sensacionais e escandalosos que arredavam os anteriores das primeiras páginas. Eram sobretudo casos de desaparecimento de fundos por má administração ou apropriação indevida; empreitadas por acabar, contratos adormecidos na gaveta, desvio de fundos públicos ou comunitários para bolsos privados. Não obstante esta nuvem de corrupção que pairava no ar, as pessoas em geral, nas mais variadas profissões e ocupações, pareciam tomadas por uma atitude de otimismo, como se no meio das dificuldades do dia-a-dia, que eram reais e por vezes mesmo pesadas, se sentissem libertas e esperançosas.

Paixão pela educação
No setor da educação, pude constatar que todo o território está coberto por uma rede de escolas primárias e secundárias que abrange toda a faixa da população jovem. Mas isso não chega para contentar os pais. Não há nada que lhes mereça tanta atenção como assegurar para os filhos uma boa educação. E boa educação significa frequentar escolas que prometem e apresentam bons resultados. São normalmente escolas privadas, caras, de acesso difícil, baseado nas notas obtidas. Muitos destes estabelecimentos são de instituições religiosas, dioceses, paróquias e congregações. Mas também os há nas mãos da sociedade civil, de companhias e de privados. Grande parte funciona em regime de internato e são autênticos baluartes de disciplina, de aplicação ao estudo, sem desvios nem distrações, o que dá aos pais um sentimento de segurança. E mesmo fora deste esquema de excelência, o Quénia pode exibir um grau de literacia invejável, pois é com toda a normalidade que tanto o queniano da cidade como o da província, não só o taxista mas também o cozinheiro ou a empregada da limpeza, com desenvoltura se exprime em inglês e em suaíli. Depois, cada um tem ainda ao dispor o seu dialeto tribal, que por vezes é comum a milhões de pessoas.

Nação cristã
O Quénia é hoje um país que olha para si mesmo como uma nação cristã. A linguagem, a opinião pública, os comportamentos, desde os mais altos cargos políticos ao simples trabalhador, transmitem a imagem de uma sociedade que se vê como cristã. Isso não nega nem esconde uma realidade mais fragmentada: ao lado das denominações cristãs há uma presença muçulmana ativa e que se faz ouvir, com áreas geográficas de prevalência, sobretudo ao longo da costa e na faixa nordeste onde confina com a Somália. A religião tradicional nas suas variadas expressões locais é ainda uma realidade, forte em números; só que atualmente envolta num manto de silêncio, sem voz nem visibilidade.
Na cena cristã, as duas denominações mais influentes são a anglicana e a católica, que vivem lado a lado e em boas relações, ocupando o mesmo território mas com áreas alternadas de predominância. Um fenómeno recente, que se faz sentir pelo crescimento rápido, é o das seitas de cariz americano. Pescam os seus adeptos dentro das comunidades cristãs e são uma verdadeira fonte de confusão e desagregação.

Febre de expansão
Falando das comunidades católicas, sobressai a celebração do domingo como a de uma verdadeira festa. As paróquias, tanto no coração das cidades como as que estão dispersas em ambiente rural, vivem uma fase de franco crescimento, mais visível talvez ao nível organizativo, mas que se preocupa ao mesmo tempo com a catequese das crianças, associações de jovens e a formação de adultos. É prática crescente que o pároco e o conselho paroquial todos os anos se retirem em centros de formação para fins de semana ou períodos mais longos dedicados a momentos próprios de formação e encontros específicos de programação. O papel determinante das mulheres, por número e nível de dedicação em toda a rede de atividades paroquiais, é visto como inteiramente normal.
A experiência do crescimento e o sentido de otimismo que anima as comunidades cristãs e a inegável generosidade dos fiéis estão a promover outra vertente ou linha de comportamento.

As paróquias desdobram-se em filiais e sucursais, talvez futuras paróquias em embrião, para acudir aos problemas da assistência sacramental. Improvisam-se locais de culto com a criação de serviços mínimos, como o jardim infantil, a catequese e a assistência aos pobres. Cada comunidade olha à sua volta e lança-se na procura de terrenos que por doação, concessão ou venda, garantam espaço para desenvolvimento próximo ou futuro.
Um fenómeno que rapidamente chama a atenção é a escolha cada vez mais frequente de um tipo de arquitetura das igrejas. É um formato que além de permitir ampla variação no tamanho e capacidade, tem a vantagem de oferecer à assembleia um espaço único e contínuo, sem divisão em alas nem linhas de colunas a quebrar a visibilidade. Mas tem sobretudo uma carga simbólica muito querida aos africanos. Como conceção, é a tradicional cabana redonda, estilizada e idealizada como casa comum, espaço natural da família elevado a imagem da Igreja–família. É o lugar onde a família se sente em casa, estreita laços, opera a reconciliação, explode em festa, aprofunda a própria identidade e sente a força da união.

Pastoral com carisma
Ao nível das vocações, é uma realidade que os seminários formam sacerdotes a bom ritmo, o que permite aos bispos cobrir cada paróquia e criar outras novas; que as congregações religiosas têm os seus programas de formação a funcionar sem pausa, os conventos e casas religiosas continuam a promover cada vez mais obras de caridade, educação e assistência; que os leigos estão a dar cada vez mais tempo e atenção à vida das comunidades. É de facto a imagem de uma Igreja viva, contente de si mesma, dos seus avanços, consciente das suas potencialidades. Mas até que ponto esta vivência e satisfação do presente não está a encobrir ou a adiar a atenção devida a problemas latentes e adormecidos?

Como se viu na explosão de protestos e violência após as eleições de 2007, o tribalismo não está totalmente superado. Ficou patente nos comportamentos que desde então têm vindo à luz, que os valores cristãos ainda não estão enraizados até ao ponto de inspirar uma linguagem clara e corajosa a apontar para caminhos de moderação, tolerância e reconciliação.
A pastoral é sobretudo virada para os sacramentos. As igrejas estão cheias, a catequese continua a fornecer a cada ano novas levas de alunos para serem batizados, as primeiras comunhões e crismas transmitem uma imagem de sucesso. Vive-se o imediato como se fosse estável, o presente como permanente. Mas para manter o ritmo de crescimento, a Igreja local precisa de um clero com séria formação teológica e de instituições de formação permanente bem oleadas e a funcionar. As congregações religiosas são um espelho onde se podem ver refletidas as potencialidades e os problemas da sociedade e da Igreja. No seu conjunto, com a sua pujança de números e obras, cabe-lhes a missão de ser sal da terra. Para isso, têm que mergulhar a fundo na fonte do seu carisma.

Texto: Luís Tomás