Brasil concede visto humanitário aos imigrantes, mas não consegue acolher e integrar a todos
Brasil concede visto humanitário aos imigrantes, mas não consegue acolher e integrar a todosOs meios de comunicação social parecem ter-se silenciado sobre as possíveis saídas para crise da Venezuela. Enquanto isso, todos os dias, centenas de imigrantes passam a fronteira com o Brasil, pelo município de Pacaraima, ao norte de Roraima. E o número não para de aumentar. Nessa porta de entrada, segundo dados da Operação acolhida, quase 7 mil imigrantes passaram no último ano, numa média de 500 a 700 por mês.
No entanto, os números do mês de agosto mostram que a realidade pode não ser bem essa. Por exemplo, no dia 12 entraram 759 imigrantes. No dia 13, foram 481 registos. Já no dia 14, os venezuelanos que passaram pela fronteira foram 1. 238, um aumento de 157 por cento se comparado com o dia anterior. Muito além desses dados frios é preciso considerar que eles representam vidas de seres humanos em situação de risco devido à precariedade das condições dos que pedem refúgio.
Uma crise sem precedentes
ao visitar a Venezuela de Nicolás Maduro, fica evidente a situação complexa em que vive o país. Diante da grave crise económica, política e social, o povo parece anestesiado e sem forças para reagir depois de tantas tentativas fracassadas. Juan Guaidó, líder da oposição, não consegue entregar o que prometeu e em dezembro terminará o seu mandato como presidente da assembleia Nacional. Os países que o reconheceram como presidente interino, recuaram diante da pressão da Rússia, China e Cuba, aliados de Maduro. a falta de recursos causa a deterioração dos serviços básicos numa economia surreal com o menor salário do mundo (apenas 3,50 dólares).
Mesmo com as grandes reservas de petróleo, a hiperinflação torna a economia inviável. Segundo o UNICEF, mais de 1 milhão de crianças não vão à escola, 1,3 milhão de crianças e adolescentes precisam de serviços de proteção, 4,3 milhões de pessoas em toda a Venezuela não têm acesso a água potável. O caos é percebido na inoperância das instituições e serviços básicos do governo empurrando o país para a ilegalidade.
No mês de junho, a alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, apresentou um comunicado da situação da Venezuela onde revelou a existência de violações de Direitos Humanos com execuções extrajudiciais em mais de 6. 800 ocorrências entre 2018 e 2019, além de torturas e uso de forças excessiva e letal contra opositores do governo.
Mais de 4 milhões de emigrantes
Diante da situação estima-se que mais de 4 milhões de venezuelanos já deixaram o país. No Brasil, segundo dados oficiais existem mais de 180 mil, números poucos expressivos se comparados com os da Colômbia que já recebeu cerda de 1,5 milhão. No Estado de Roraima, principal porta de entrada no Brasil, estabeleceram-se cerca de 50 mil venezuelanos, mas os números não são confiáveis. a Operação acolhida coordenada pelo Exército Brasileiro com a ajuda do alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (aCNUR), abriu 13 abrigos em Boa Vista e Pacaraima, mas acolhe apenas 6,5 mil venezuelanos. Sem vagas para todos, milhares deles vivem em abrigos improvisados, na rua, ao redor da Estação Rodoviária, em casas alugadas e em pelo menos 15 ocupações. Duas delas com mais de 600 pessoas cada. O Brasil concede visto humanitário aos imigrantes, mas não consegue acolher e integrar a todos.
Por não encontrarem emprego, mesmo os que possuem qualificação, acabam por aceitar trabalhos informais ou tentam vender qualquer coisa nas ruas. a ideia é seguir para outras cidades com mais oportunidades.
Como era de se esperar, em Boa Vista e Pacaraima, houve um impacto nas áreas de saúde, educação, emprego, habitação e serviços sociais. Nos hospitais a presença de venezuelanos é grande. Infelizmente muitos são abandonados à sua própria sorte.
Interiorização no Brasil
Uma das ações para desafogar Boa Vista é a interiorização de venezuelanos em outros estados. Em abril de 2018, um programa de realocação foi iniciado pelas Forças armadas em coordenação com autoridades federais e locais, o aCNUR, outras organizações da ONU, a sociedade civil e o setor privado. até agora, mais de 15 mil venezuelanos, segundo dados oficiais, foram transferidos do estado de Roraima para mais de 50 cidades onde há mais oportunidades de integração.
a diocese de Roraima, através da Cáritas e do apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Cáritas Brasileira, Serviço Pastoral do Migrante (SPM), Instituto de Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Serviço Jesuíta para Migrantes e Refugiados (SJMR) e outras entidades, lidera o projeto Caminhos de solidariedade: Brasil & Venezuela. Iniciado em outubro de 2018, até agora este programa levou para 11 dioceses de outros estados cerca de 350 venezuelanos.
Equipe itinerante IMC
a Operação acolhida conta com o apoio de várias organizações e instituições. a Igreja Católica esteve presente desde o início. a Equipa Missionária Itinerante do Instituto Missões Consolata (IMC), uma iniciativa continental para responder às emergências humanitárias referentes aos migrantes e refugiados, atua em Boa Vista desde maio de 2018. Hoje a equipa está a dar prioridade às pessoas mais vulneráveis e indígenas moradores no espaço Ka Ubanoko, (dormitório comum, na língua warao). Trata-se de um complexo desportivo em construção e abandonado que foi ocupado no início do mês de março por mais de 600 venezuelanos, dentre os quais, 350 indígenas Warao e E”nepa, e 250 não-indígenas. as crianças são cerca de 190. Todos estavam fora dos abrigos, muitos viviam à sobra de cajueiros no bairro Pintolândia.
Nos últimos quatro meses a Equipa itinerante contou com o trabalho do jovem queniano, John austin Omondi, e com o apoio do padre Manolo Loro. John acaba de se transferir para Manaus onde fará um caminho vocacional naquela arquidiocese. agora, o padre congolês, Oscar Tongombe Liofo, IMC, que chegou em Boa Vista (RR) no mês de junho está a acompanhar os trabalhos que nestes dias tem também a participação do Conselheiro Geral, padre Jaime C. Patias (IMC).
Na sua organização, o Ka Ubanoko tem à frente uma coordenação e a liderança de seis chefes indígenas. É uma experiência de gestão coletiva do espaço que abriga indígenas e não-indígenas. Para isso, eles contam com o apoio de diversas instituições e organismos. além da assistência religiosa e outras iniciativas, os Missionários da Consolata estão focados na alimentação das crianças dos seis aos 12 anos. a ação consiste em oferecer, nas instalações de uma comunidade católica próxima, dois almoços por semana acompanhados de formação humana, cultural e higiene. Um grupo de voluntários venezuelanos prepara as refeições e os pais encarregam-se de levar as crianças até o local.
a saúde das crianças é, de facto, uma das maiores preocupações, tendo sido detetados alguns casos de desnutrição. Esta semana, as crianças dos zero aos cinco anos também começaram a receber alimentação complementar (multimistura com mingau) providenciada pela Pastoral da Criança.como o espaço não é considerado um abrigo oficial, os desafios estão em todas as áreas: organização, documentação, saúde, limpeza, transportes, educação, trabalho e renda, agricultura, integração. a situação de vulnerabilidade aumenta os riscos de exploração, uso de drogas, fome e doenças em uma população já ameaçada pelo fato de migrar. Por isso, conforme nos convida o Papa Francisco, é urgente: acolher, proteger, promover e integrar. Muito mais do que vizinhos, os venezuelanos são nossos irmãos e irmãs.