Há dois grandes grupos de caminhantes: os peregrinos e os turigrinos (turistas) ” ambos com um aumento significativo na última década, acompanhando a crescente notoriedade do Caminho de Santiago
Há dois grandes grupos de caminhantes: os peregrinos e os turigrinos (turistas) ” ambos com um aumento significativo na última década, acompanhando a crescente notoriedade do Caminho de SantiagoQuanto mais longe chego, mais perto fico de me encontrar. a cada passo, a cada batida do cajado, há uma paisagem única que se revela, uma pequena capela que emerge, um bom caminho! acenado do campo; mas há, sobretudo, uma ligação espiritual que interpela cada peregrino de maneira diferente. No ano passado foram 278 mil os que chegaram pelos meios tradicionais (a pé, de bicicleta e a cavalo) à Catedral de Santiago de Compostela, em Espanha. a capital da Galiza acolhe, há mais de mil anos, peregrinos que visitam a tumba prateada do apóstolo Santiago, seguindo o Caminho das Estrelas, a suposta origem do topónimo Compostela. Mas antes, já romanos e celtas caminhavam até Finisterra, ao fim de mundo, hoje um dos locais emblemáticos da peregrinação jacobeia – o quilómetro zero, apesar de ser a última estação. a antiguidade do caminho e a mistura de culturas, ao longo dos séculos sobrepostas em camadas nos itinerários – no ano passado palmilhados por 13 mil portugueses (8,62 por cento do total) -, explicam a grande diversidade de razões e objetivos dos peregrinos dos caminhos jacobeus. as estatísticas do Serviço de Peregrinos da Catedral mostram que a maioria peregrinou em 2016 com motivação religiosa, ou religiosa e cultural. as razões exclusivamente culturais foram apontadas por 22 mil peregrinos. Mas estes dados estão influenciados pelo facto da Compostela (o certificado dado a quem cumpre o caminho) ser atribuída apenas nos dois primeiros casos. Nos últimos seis anos percorri a pé dois mil quilómetros nos caminhos portugueses de Santiago (Central, Costa/Variante Espiritual e Interior), Finisterra, Primitivo/Ruta de los Hospitales e Caminho da Geira Romana e dos arrieiros (ainda a propor para homologação). Há dois grandes grupos de caminhantes: os peregrinos e os turigrinos (turistas) – ambos com um aumento significativo na última década, acompanhando a crescente notoriedade do Caminho de Santiago. a procura de uma experiência de férias espiritual, mais do que exclusivamente religiosa, parece ser o traço mais comum à generalidade dos peregrinos e nem sempre é fácil de explicar. O arquiteto Paulo Pires Coelho, que peregrina a Santiago a pé com a mulher, Maria Coelho, procura esclarecer as suas motivações: Muitos nos perguntam porquê vestir a pele de peregrino e rumar à tumba do discípulo de Cristo, ano após ano; a resposta é quase sempre a mesma: porque precisamos. Não é uma aventura, não é uma caminhada, não é um passeio cultural, não é uma promessa, não é uma descoberta de um país. É muito mais que tudo isso. O caminho começa agora, considerou o peregrino, de 54 anos, quando concluiu o Caminho Primitivo, em 2016. a ideia de que o caminho (re)começa à chegada à catedral, de que o importante é o caminho e nãoa meta, é uma das mais comuns entre os peregrinos. É por isso que procuram uma espiritualidade que resulta mais das experiências ao logo da caminhada do que da religiosidade vertida na catedral – mas ambas são complementares e, em certa medida, até inseparáveis. as experiências emergem do contacto com gente muito diferente, proveniente de 147 países no ano passado, e de espaços repletos de histórias de peregrinos – como o Rincon del Peregrino e o Rincón Telarana/Casa do César, entre Ourense a Cea – que alimentam uma espiritualidade que alia a busca interior, percursos carregados de história, natureza, património e cultura. E alimentam também, cada vez mais, a vertente turística. as férias low-cost: seis euros para dormir, nos albergues públicos, e menus do peregrino a 10 ou menos euros a refeição. apesar destes preços baixos, os peregrinos tradicionais a Santiago de Compostela representam receitas globais importantes. Em 2015 – os últimos dados disponíveis – gastaram 272 milhões de euros, 169,5 milhões ao longo do caminho (no essencial, refeições e dormida, uma média de 40 euros por dia) e o restante nos preparativos e viagem de regresso a casa. O caminho português corresponde a 4,3 milhões de receitas e os peregrinos portugueses gastam 1,2 milhões de euros. a massificação do caminho Francês e o aumento exponencial de peregrinos noutros itinerários, como o Central Português, justificam a procura de novas vias históricas de peregrinação. É o caso do Caminho da Geira Romana e dos arrieiros (Braga/Santiago), que poderá ser a 10a rota jacobeia, a par dos caminhos Francês, Norte, Via da Prata, Inglês, Primitivo, Central Português, Finisterra, Inverno e Rota Marítimo-Fluvial. a associação do Caminho Jacobeu Minhoto Ribeiro (aCJMR) e a associação Codeseda Viva (aCV) coordenam a investigação histórica, patrimonial, do traçado e sobre outros recursos necessários à validação do caminho; um trabalho iniciado em 2009 que pretendem ver reconhecido pela Xunta da Galícia e a Confraria Jacobeia até ao ano Santo de 2021. Consideramos que o projeto já não pode voltar atrás. Cada vez que um peregrino percorre este caminho transmite uma mensagem e deixa o testemunho da sua passagem, e isso é irreversível, diz abdón Fernández, presidente da aCJMR, destacando tratar-se de um itinerário de história, património, águas termais e natureza deslumbrante, com descobertas a cada quilómetro, por exemplo nos parques naturais ou nos vinhedos do Ribeiro. É um caminho que convida a continuar, sobretudo numa altura em que outros itinerários, como o Francês, começam a ficar massificados. Nós temos um dos caminhos históricos mais antigos e esperamos que seja reconhecido e homologado até 2021, adianta abdón Fernández. Nesta altura estamos concentrados em recolher e compilar documentos históricos. Encontrámos muito mais do que estávamos à espera, muito relevantes, como de oito escritores da Galiza que falam da rota de peregrinação dos portugueses que passava por Codeseda, destaca Carlos da Barreira, presidente da aCV. Nós não iremos voltar atrás, porque os documentos históricos estão aí. Esperamos que seja possível o seu reconhecimento como caminho oficial e estamos apostados em que venham peregrinos. Entretanto, queremos concentrar-nos na recolha e análise dos dados históricos e que o traçado seja aquele que eles revelarem, refere Carlos da Barreira. a procura de caminhos novos, ou menos saturados de peregrinos e turigrinos, é um elemento que ajuda a compreender a relação que desejam manter com o Caminho de Santiago: tranquila, interior, de busca do eu, em que possam escolher os momentos de companhia, consigo próprios ou com outros. Em qualquer circunstância, o Caminho de Santiago será sempre uma miscelânea heterogénea de espiritualidade, religiosidade, peregrinação, turismo, férias e paganismo. É um espelho do mundo e, assim sendo, reflete as suas virtudes e vicissitudes. aliás, simbolicamente, o primeiro guia do peregrino, que descreve o Caminho Francês, é o Código Calixtino, um manuscrito iluminado do século XII, atribuído geralmente ao Papa Calixto II. O itinerário é descrito como um reflexo da Via Láctea, que servia na Idade Média de orientação aos fiéis. a obra é considerada o primeiro guia de viagens e turístico da história. além do mais, quem caminha, reza com os pés.