«Foi precisa muita repressão para acabar com uma fé que chegou a ter centenas de milhares de seguidores no Japão», afirma Renzo di Luca, padre que dirige o museu junto ao Memorial dos 26 Mártires
«Foi precisa muita repressão para acabar com uma fé que chegou a ter centenas de milhares de seguidores no Japão», afirma Renzo di Luca, padre que dirige o museu junto ao Memorial dos 26 Mártires a cidade é mais famosa agora por causa da bomba atómica, mas no século XVI chegou a ser a capital cristã do Japão, graças aos missionários que acompanharam os comerciantes portugueses. Depois vieram as perseguições, em nome da unidade nacional, e o martírio de padres e fiéis. Houve quem mantivesse a fé em segredo por dois séculos, tão surpreendente como a popularidade de Portugal hoje em dia nestas terras do extremo-orienteOs 200 anos dos holandeses em Nagasáqui não deixaram tantas marcas como os 60 dos portugueses, afirma Junji Mamitsuka, enquanto mostra os urbanística reconstruídos em Dejima. a pequena ilha artificial (hoje agarrada a Nagasáqui) foi construída em 1636 para confinar os movimentos dos comerciantes portugueses, mas acabou por entre meados do século XVII e meados do século XIX ficar entregue à Holanda e ser a única porta de entrada no Japão para os produtos europeus. as seis décadas de que fala o vice-diretor do turismo de Nagasáqui dizem apenas respeito à cidade, pois os portugueses chegaram ao arquipélago nipónico em 1543 e por cá ficaram quase um século, até serem expulsos em 1639. Primeiro dedicados apenas ao lucrativo negócio da troca de seda chinesa por prata japonesa, os portugueses começaram a evangelizar, uma decisão papal e da coroa portuguesa depois de São Francisco Xavier visitar o Japão em 1549. Pouco a pouco, milhares de budistas e de xintoístas foram trocando as suas fés tradicionais pelo catolicismo. as conversões abrangeram mesmo alguns daimios. Entre esses senhores da guerra, a atração pelo cristianismo tanto podia ser emocional (de fé verdadeira) como interesseira, pois as armas de fogo trazidas pelos portugueses eram muito importantes nas constantes batalhas da guerra civil japonesa. Um dos daimios cristãos, Omura Sumitada, não só aceitou que Nagasáqui fosse uma cidade governada pelos jesuítas como enviou uma embaixada à Europa, com os quatro jovens japoneses a serem recebidos em 1585 pelo Papa em Roma, depois de desembarcarem em Lisboa e passarem por Madrid, pois Filipe II governava então os dois países ibéricos. Nessa época, calcula-se que houvesse no Japão uns 300 mil cristãos, admite Mihoko Oka, professora na Universidade de Tóquio, fluente em português, que se tem dedicado ao estudo do chamado século cristão do Japão. a chegada dos primeiros portugueses ao Japão deveu-se ao acaso, mas a verdade é que a presença na Ásia ocorreu porque os reis portugueses tinham decidido ir em busca de cristãos e de especiarias. E no caso japonês, tal como em vez de pimenta se negociou prata, não havendo cristãos, tratou-se de os arranjar. E com grande sucesso. O problema é que o comércio era bem visto pelos senhores da guerra, mas não a missionação, que punha em causa toda a tradição religiosa e o próprio sistema de poder. Era uma época de guerra civil. as pessoas queriam acreditar que havia esperança apesar da violência. E os padres portugueses davam resposta a esses anseios, mesmo que alguns grupos budistas fizessem o mesmo e acabassem por ser também perseguidos pelas autoridades, que queriam impor o xintoísmo, explica o monge Hirano, cujo templo foi erguido no local onde existiu a primeira igreja em Nagasáqui, Shuntokuji ou dos Santos. Dos tempos católicos sobra pouco no templo budista. O monge mostra num recanto do jardim uma pedra de mármore que terá pertencido ao altar. Nela um Buda faz companhia a uma imagem de Nossa Senhora, prova de como o moderno Japão se tornou tolerante, nada parecido com aquilo que se vê no recente filme Silêncio’ do realizador americano Martin Scorsese. Baseado num livro homónimo do cristão japonês Shusaku Endo, o filme mostra a resistência dos padres portugueses e dos fiéis japoneses a renegar a fé, mesmo sofrendo torturas. Bastava, era-lhes dito pelos inquisidores japoneses, pisar um crucifixo ou uma imagem da sagrada família, para evitarem o sofrimento. Milhares morreram por recusarem a apostasia e muitos outros tiveram de se esconder. Foi precisa muita repressão para acabar com uma fé que chegou a ter centenas de milhares de seguidores no Japão, afirma Renzo di Luca, padre que dirige o museu junto ao Memorial dos 26 Mártires, numa outra colina de Nagasáqui. É impressionante este monumento a lembrar a crucificação em 1597 de duas dezenas de cristãos japoneses e de seis padres jesuítas e franciscanos, uma espécie de primeiro grande aviso a quem insistia na nova fé. À medida que a guerra civil japonesa começava a produzir um homem forte (Oda Nobunaga, depois Toyotomi Hideyoshi e por fim Ieyasu Tokugawa, que fundou uma dinastia de xóguns), tanto os daimios que se tinham convertido como os seus súbditos cristãos estavam sob ameaça. Num esforço de centralização e de unificação, as crianças luso-japonesas foram expulsas do país, os comerciantes confinados a Dejima e os padres proibidos de entrar no país. Os holandeses conseguiram passar a ideia de que Portugal e Espanha, com o apoio do Papa, planeavam invadir o Japão. Não era verdade mas teve impacto, sublinha a professora Oka. Embora falso, o rumor teve êxito e os cristãos japoneses passaram a ser encarados como uma quinta coluna. Quando em 1637 se revoltaram, em Shimabara, próximo de Nagasáqui, foram esmagados sem piedade. Os sobreviventes refugiaram-se nas remotas ilhas Goto ou transformaram-se em kakure kirishitan, cristãos-escondidos que fingiam ter outras divindades. Os cristãos oravam junto a estas rochas e sobre elas dispunham pedrinhas para formar uma cruz. Se viesse alguém era fácil disfarçar, explica Masatsugu Yasuda, um bancário que é cônsul honorário de Portugal em Nagasáqui. Fala das rochas no litoral de Sotome, a norte da cidade, que é a zona retratada no início do filme de Scorsese. Expulsos os católicos portugueses e com os protestantes holandeses encerrados em Dejima proibidos de proselitismo, o mundo deu como certo o desaparecimento do cristianismo japonês. até que, em 1864, já com o Japão reaberto ao contacto com o estrangeiro, os franceses construíram a catedral de Oura e um dia o padre Bernard Petitjean viu aparecerem à porta os cristãos escondidos. Foi uma surpresa. Ninguém esperava que houvesse cristãos no Japão. O Papa foi informado e ficou radiante. O mundo católico, sobretudo, viu nisto uma espécie de milagre, sublinha o padre Di Luca. a nova igreja de Oura foi erguida numa colina de Nagasáqui da qual se avista o Memorial. a partir de meados do século XIX, Nagasáqui reemergiu como capital cristã do Japão. E assim se mantém até hoje, apesar de a bomba atómica de 1945, destinada a pôr fim à Segunda Guerra Mundial, ter explodido junto à catedral de Urakami e morto os fiéis que assistiam à missa de domingo. Hoje existirão 60 mil católicos em Nagasáqui, numa população de 1,4 milhões. No Japão, entre católicos e protestantes, os cristãos devem ser uns dois por cento dos 127 milhões de habitantes. Forte é a memória de Portugal, sobretudo em Nagasáqui. É muita a curiosidade sobre os portugueses. a cidade chegou a ser administrada pela Companhia de Jesus e a ter uma maioria de cristãos. Luís de almeida foi o primeiro a chegar aqui. Era padre e médico, conta o cônsul Yasuda. E acrescenta que há muitas palavras japonesas vindas do português, como pan, botan e kopu (pão, botão e copo). além disso, o bolo que faz as delícias dos visitantes de Nagasáqui chama-se kasutela (castela) e é uma espécie de pão-de-ló deixado como legado pelos portugueses de há 500 anos.