Testemunho sentido de um missionário da Consolata nos primeiros anos de sacerdócio na missão no Brasil. “Os jovens evangelizaram-me”, afirma.
Testemunho sentido de um missionário da Consolata nos primeiros anos de sacerdócio na missão no Brasil. “Os jovens evangelizaram-me”, afirma. Em 1997, recém-ordenado sacerdote missionário, parti para a missão, no Brasil. Fiquei na Paróquia de Nossa Senhora da Consolata, na periferia do Rio de Janeiro. Uma zona de favelas.como acontece em outros lugares, encontrei ali a condição humana naquilo que ela é na sua essência, na sua complexidade, num misto de maldade e bondade, de esperança e desânimo, de sonho e utopia.
Naquele lugar, naquela geografia, junto daquele povo que me acolheu, agora dou-me conta de que uma das muitas coisas que me marcaram foi a pujança do grupo de jovens da paróquia. Era uma comunidade onde se respirava dinamismo. Foi para mim um autêntico banho de juventude. agora estou convencido: a juventude não é apenas a Primavera, mas o dinamismo da Igreja.
Jovens: vento novo do espírito
aos jovens podemos confiar-lhes cargos de responsabilidade. Eles dão bem conta do recado. Eu corri o risco de confiar neles. E a verdade é que os eventos preparados pelos jovens iam dando cor e sabor à caminhada pastoral e espiritual da paróquia. além dos encontros semanais do grupo, ninguém ficava indiferente à preparação e participação destes nas liturgias das celebrações e ao toque de juventude que imprimiam na pastoral.
a caminhada que, cerca de 150 jovens da paróquia faziam comigo, uma vez por ano, a pé ao Cristo Redentor, lá no alto do Corcovado, um monte escarpado do Rio de Janeiro, era um momento excelente para organizar o mutirão (mobilização colectiva) da juventude, da Igreja e fora dela no espírito de romaria, ao símbolo por excelência da capital carioca. Lá no alto, entre visitantes do mundo inteiro, cantávamos, rezávamos sem medo de sermos felizes. Era a festa da missão!
Um dos momentos mais marcantes do ano era a encenação da paixão e morte de Jesus feita pelo Ministério Teatral apóstolos da Expressão de Cristo, um grupo de teatro existente na comunidade, que ensaiava e apresentava as mais variadas peças, abordando diversos temas eclesiais, catequéticos, bíblicos e sociais. Do grupo faziam parte estudantes e profissionais de teatro da comunidade.
Preparavam os textos da peça a partir dos relatos da paixão dos evangelhos e inspirados no tema da Campanha da Fraternidade de cada ano, dramatizavam a paixão e a morte de Cristo. Participavam também jovens de outras pastorais. Era uma apresentação de qualidade, feitas com o espírito e a alma que o momento pedia. Foi uma das muitas coisas que me surpreendeu nos 7 anos que ali estive.
Tocavam os corações, despertavam sentimentos e emoções, provocavam conversões.
Jovens testemunham a fé na vida
Hoje, longe desse país e dessa missão que me marcou profundamente, sinto que essa juventude me evangelizou.
Deixei-me evangelizar pela Graziela, estudante de Direito, empenhada em colocar-se ao serviço da justiça e dos mais deserdados do seu país; sensibilizei-me com a fortaleza de fé do jovem Leandro, atingido num ombro por uma bala perdida quando jogava futebol com outros jovens na praça H, e nele ficou alojada; enterneci-me com o airton e o Wilson, que, com paciência de Job, recomeçavam teimosamente, e pela enésima vez, a formar o seu grupo de acólitos, de tão capetinhas (traquinas) que eles eram; impressionou-me o entusiasmo missionário do João e da Flávia, com o seu grupo da Infância Missionária, e o lema, sempre repetido: criança evangeliza criança; deixava-me surpreender com a Ludmilla, uma das coordenadoras do grupo jovem, com seu humor contagiante, que de todos arrancava um sorriso; surpreendiam-me as 48 horas do dia da Jeanice, a sempre atenta à boa execução dos inúmeros eventos que marcavam o dia-a-dia da paróquia; não resistia à alegria explosiva da ângela, jovem que tinha tantos motivos para deixar-se levar pela angústia, depois do covarde assassinato do irmão pelos traficantes da droga, e que soube canalizar esses sentimentos na responsabilidade e dedicação à comunidade do bairro dos Telégrafos, de que é responsável; chamava-me a atenção o Vinícius, sem muita formação litúrgica, mas sempre disponível para preparar as celebrações da comunidade com um mínimo de dignidade; surpreendia-me a dedicação e paixão do Jorge Filipe pela música, colocando ao serviço da paróquia esse dom tão precioso que Deus lhe deu, como membro do conjunto musical católico Banda Discípulos, e pela sua liderança na formação e preparação de novos músicos; comovia-me o empenho e testemunho comunitário do Marcelo, sempre disponível para resolver qualquer problema mais técnico na comunidade; deixei-me tocar pela sensibilidade caritativa dos jovens Vivian e Luís alberto, animadores da solidariedade social no trabalho com os Moradores de Rua (sem-abrigo, cá entre nós), quais samaritanos dos tempos modernos.
O Deus da juventude
Podia continuar com um rosário de tantos outros jovens que deixaram marcas e são exemplos de uma maneira muito bela de ser Igreja. agora, à distância, é mais fácil individualizar cada dom, cada talento, cada gesto de generosidade. De longe, nós podemos ver a floresta no seu todo e ver como a paisagem é bela. Talvez ali, naquele momento eu não tivesse sabido valorizar cada um. Mas anima-me a certeza de que todos estão no coração de Deus. Eram, e são, sinais do Reino de Deus que ali vão acontecendo.
Naquela missão que me foi confiada, descobri o Deus que não é apenas racionalidade, que não é um Deus polícia, fiscal ou juiz, nem o Deus teológico que me ensinaram na faculdade de teologia, mas o Deus da vida e da história.
Digo sem medo: esses jovens, esses leigos, evangelizaram-me a mim que sou missionário.
E, por isso, devo-lhes muito, e isso é mais que a saudade.

(Texto publicado na secção Tempo Jovem da revista Fátima Missionária deste mês. Leia e assine. )