«Mesmo não estando a pedir, tal como nunca pediu nada em troca dos seus percursos ou dos bálsamos que aplicou, adelaidinha gostaria de ser tratada com o carinho com que sempre cuidou de quem dela precisou»
«Mesmo não estando a pedir, tal como nunca pediu nada em troca dos seus percursos ou dos bálsamos que aplicou, adelaidinha gostaria de ser tratada com o carinho com que sempre cuidou de quem dela precisou»adelaidinha está num lar. Chamam-na de adelaide, como está no bilhete de identidade. Ninguém a chama de adelaidinha. E disso ela terá concerteza saudades: talvez do seu nome, da sua cama com os quadros do Coração de Jesus e de Nossa Senhora sobre a cabeceira; do mar que avistava da sua casa. Mas a saudade maior seria talvez a de andar pela aldeia, com a sacola de tecido no braço, preenchida com tudo o que poderia precisar para levar o consolo que lhe pediam. Hoje, no lar, ninguém sabe. Mas ela sabia: viveu num tempo em que faltava tudo. Na sua aldeia nem escola havia. Nem médicos, nem enfermeiras, nem antibióticos. Nesse tempo adelaidinha era uma jovem destemida e curiosa. aceitou o convite para trabalhar na cidade, na casa do médico a quem toda a aldeia recorria. aí, atenta e sempre disponível, aprendeu tudo o que uma assistente de médico podia aprender. Quando por razões de saúde teve de abandonar o seu trabalho, regressou a casa dos pais. Mas não vinha como partira: continuava sem saber ler, mas sabia agora tanta coisa de curar! Foi assim que passou a ser a curandeira da aldeia. Se alguém se cortava, lá ia adelaidinha; se havia medicação injetável, era a ela que chamavam; até se alguém partia um dedo, também nisso lhe pediam ajuda. Percorria quilómetros, a pé, com sol ou chuva. Se a chamavam com urgência, lá ia ela, não interessava onde nem quanto demoraria. Costumava andar sozinha, mas sempre que podia, levava uma criança consigo – para que aprendesse o que ela sabia, e um dia, talvez, fariam bem mais do que ela. Um dia, o sobrinhito que a acompanhava tropeçou e torceu o pé. adelaidinha enfaixou-lhe o pezinho e levou-o ao colo o resto do percurso. aliviado da dor, artur confessou-lhe numa certeza de criança que sonha ser grande: Tia, quando for velhinha, também vou pegar em si ao colo. adelaidinha recordava esta promessa muitas vezes. Gostava de sentir quanto fora amada. Não sei se foi pegada ao colo. Só sei que no lar que é a sua casa de agora, ninguém sabe da sua história nem do seu nome de verdade. Não sabem que suturou golpes, que curou feridas, que enfaixou fraturas. Não sabem que consolou, que apaziguou dores, que curou. Talvez só saibam que é adelaide e analfabeta. Mesmo não estando a pedir, tal como nunca pediu nada em troca dos seus percursos ou dos bálsamos que aplicou, adelaidinha gostaria, isso eu sei, de ser tratada com o carinho com que sempre cuidou de quem dela precisou.como sei? Porque quando alguém lhe faz uma carícia ou lhe fala, costuma soltar-se uma lágrima dos olhos cansados e habitualmente fechados. Talvez ela gostasse de sentir que tal como ontem, hoje há alguém que se põe a caminho porque escuta o pedido de quem tem dor, e porque sabe e quer usar o que tem na sacola: algo que cura!