Não sabem ler nem escrever mas têm consciência que a alfabetização é o remédio contra a cegueira que as domina, essa doença social causada pela indiferença e agravada pelo egoísmo
Não sabem ler nem escrever mas têm consciência que a alfabetização é o remédio contra a cegueira que as domina, essa doença social causada pela indiferença e agravada pelo egoísmoMuitas vezes, não temos consciência da força e do poder que pequenos objetos têm ao serviço do espírito humano. Uma caneta, um lápis, uma folha de papel… Poder inesgotável. Sem medida. Sem limites. Ou talvez não. Diante de mim, trava-se uma batalha inédita. Um grupo de mulheres, na sua maioria oriundas das comunidades rurais mais pobres do norte da Costa do Marfim, agarram o giz com a mesma força com que agarram o cabo da enxada quando penetram ou rasgam a terra. Sobre um pedaço de madeira abrem sulcos, cavam covas, semeiam grãos. a cena é divertida mas também dramática. Faz rir e dá vontade de chorar. Desenham o limão mas não sabem que é um o; desenham o pilão mas não sabem que é um l; desenham o grão de milho mas não sabem que é a ponta do i; desenham a metade da cabaça, mas não sabem que é o c, ou o u. a sua alegria por esboçar uns rabiscos torcidos é imensa. Parecem crianças exaltadas, empurrando-se umas às outras para mostrarem a todos as letras deformadas, acabadas de sair do forno das suas habilidades. ao olhá-las, sinto um aperto imenso no estômago por me dar conta que, a maioria delas, nunca aprenderá a ler e a escrever mesmo que a sua vontade seja tanta. Foram convocadas para um encontro em Marandallah, de três dias, sobre a importância da alfabetização para o seu próprio desenvolvimento. a maioria é a primeira vez que se senta numa cadeira com um lápis e um caderno nas mãos. Mas a vida está cheia de mistérios. E o que está a acontecer, na sua forma rude e simples, pode ter na vida destas mulheres o mesmo impacto que teve para a humanidade a descoberta do fogo, da roda ou do espaço. O caminho a percorrer é também ele longo e árduo mas possível. Não sabem ler nem escrever mas têm consciência que a alfabetização é o remédio contra a cegueira que as domina, essa doença social causada pela indiferença e agravada pelo egoísmo. Não pedem muito. Pedem apenas que alguém lhes dê um pouco de atenção e as ajude a desenhar, pelo menos uma vez na vida, as letras que compõem os seus nomes: Soro Yeo, Tuyo. Uma vez na vida. São elas, as mesmas mulheres que há algumas horas atrás pareciam crianças a exibir as suas primeiras letras sobre um pedaço de madeira, que agora cantam e dançam consoladamente à volta duma árvore imensa onde a Virgem de Fátima construiu o seu ninho. Em compasso, deslizam à direita e à esquerda, rodopiam e, passando à frente da Virgem, levantam para ela os braços e lhe dizem: Ninguém é pobre quando tem uma mãe como tu! Dentro de algumas horas, regressarão a si mesmas, a pé ou transportadas por uma moto-triciclo, em que cada buraco da pista será motivo de tantas gargalhadas. Para trás, ficarão momentos inesquecíveis de alegria por terem tido a oportunidade de se encontrarem durante o dia, de se olharem ao espelho durante a noite e de saberem que há um dia por ano para as mulheres. a partir de agora, o pedaço liso de madeira será substituído pelo campo áspero e sem limites, o pau de giz pelo cabo da enxada, o limão voltará a ser limão e o mesmo se passará com o pilão, o grão de milho ou a metade da cabaça. Já não terão mais tempo para o jogo do sapo, de futebol ou para os passeios pelas ruas da vila sem fardos à cabeça. Tudo será esquecido rapidamente. Tudo, exceto o que não se pode esquecer.