Na exortação pastoral sobre a alegria do Evangelho, o Papa propõe uma «evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais»
Na exortação pastoral sobre a alegria do Evangelho, o Papa propõe uma «evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais»O modo mais fácil de falar das perspectivas missionárias do Papa Francisco seria recomendar a leitura integral da Evangelii Gaudium (EG), a exortação pastoral sobre a alegria do Evangelho, publicada em Novembro passado. Bastaria, aliás, percorrer os títulos ou excertos do texto (por exemplo, os capítulos III e IV), para entender a riqueza, vastidão e exigência do entendimento missionário do actual Papa. Não, não é assim que se deve enunciar o tema. Recomece-se, então: Francisco só entende uma Igreja que seja missionária – a acção missionária é mesmo o paradigma de toda a obra da Igreja (EG 15). O que tem consequências em toda a vida interna da comunidade cristã e em toda a acção dos cristãos. Diariamente, o Papa surpreende com afirmações, desafios e exigências que, de uma forma ou de outra, estão também referidos na EG, como síntese plena do seu pensamento. É um Papa que quer cristãos intranquilos, desassossegados, que não se limitem a repetir o que sempre fizeram, antes ousem pensar de forma criativa. Por isso, não é difícil descobrir no texto as exigências de uma perspectiva missionária. Desde logo, a ideia de que a missão diz respeito a todos e a cada um; e ela não se confina à ideia tradicional de serem os europeus a evangelizar os povos da Ásia, África ou das regiões mais recônditas da américa Latina. a tarefa diária é enunciada pelo Papa de forma simples: cada um levar o Evangelho às pessoas com quem se encontra, tanto aos mais íntimos como aos desconhecidos (EG 127). Ou seja, o território de missão é, para um crente, aquele onde se vive – e aqueles com quem se vive. Há outros dois territórios para a missão: um cultural e um geográfico. O primeiro é o do profundo respeito por cada cultura, mesmo se esta não esgota o mistério da redenção de Cristo (EG 118). Isso pressupõe que a Igreja é um povo com muitos rostos e que cada ser humano vive situado numa história e numa experiência concreta. a diversidade cultural deve ser respeitada e encarada como uma riqueza e não como limitação. O que tem consequências: não se pode confinar a fé aos limites de compreensão e expressão duma cultura, mesmo que seja a europeia (EG 111-118). O território geográfico apontado pelo Papa constitui um dos grandes desafios à pastoral da Igreja: Precisamos de identificar a cidade a partir dum olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças (EG 71). Hoje, as cidades são o lugar de muitos medos contemporâneos – da insegurança, da solidão, das doenças, da pobreza… Para o Papa, o papel dos cristãos é claro: Deus vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça. Esta presença não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada (id. ). Porque Deus não se esconde de quem o procura sinceramente, mesmo que o faça tacteando, acrescenta. O Papa propõe, assim, uma evangelização que ilumine os novos modos de se relacionar com Deus, com os outros e com o ambiente, e que suscite os valores fundamentais (EG 74). a esta proposta não deve ser alheia a valorização que o documento também faz da religiosidade popular, que tem uma grande força evangelizadora e é, mesmo, um lugar teológico (EG 122-126). O que fica dito tem duas implicações sérias: desde logo, uma profunda e fecunda atenção à realidade. Na linha do que o Papa tem proposto, a Igreja não deve, em primeiro lugar, condenar a realidade humana mas, antes, ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho (EG 114). a atenção aos sinais dos tempos, aos indícios da presença de Deus no nosso mundo, é a primeira atitude missionária que permite, no passo seguinte, propor o aprofundamento dos valores do Evangelho de Jesus – que coincidem com os valores humanos fundamentais, mesmo que vividos com diferentes expressões. a segunda consequência relaciona-se com a religiosidade popular: não se trata de multiplicar procissões ou outras formas de devoção tradicional. Mas, antes, de descobrir e valorizar o potencial que as expressões dessa piedade popular têm, para colocar crentes e não-crentes (ou indiferentes, que constituem hoje o maior desafio e o maior número) à procura de valores humanos que coincidem com o Evangelho. Uma festa de santos populares onde se introduza um pequeno elemento sobre o gosto da festa e da fraternidade ou uma via-sacra que percorra lugares significativos da vida das pessoas meditando os problemas da cidade em cada estação, podem ser fortes experiências de encontro, solidariedade e desafio. Valores como a liberdade, a justiça, a paz, a solidariedade, a fraternidade e a beleza podem levar crentes e não-crentes a buscar uma sociedade mais justa – logo, são possibilidades de missão no território privilegiado que é a vida de cada um(a). Da exortação do Papa retira-se, ainda, o conteúdo social da evangelização: No próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. Daqui surge o imperativo da inclusão social dos mais pobres e do urgente combate às causas estruturais da pobreza e à desigualdade social, que é a raiz dos males sociais (EG 186-202). a denúncia do sistema económico dominante é, assim, um imperativo da missão em nome do Evangelho, porque esse modelo, tal como diz o Papa, mata (EG 53) – literalmente: aumenta enormemente o número de refugiados, cresce a taxa de suicídios, de desempregados ou de pobres, desenvolve-se o comércio de armas… O texto sugere ainda muitas das atitudes que um cristão deve ter, se imbuído de uma verdadeira adesão a Jesus – ou seja, de uma atitude missionária: deixar-se conduzir por Deus (EG 8), irradiar alegria (EG 9), propor a verdadeira revolução da ternura a que Deus nos convida (EG 88). No fim de um tal caminho poderemos dizer, como o Papa escreve no início: a alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. (… ) Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria (EG 1). o autor escreve segundo a anterior norma ortográficatexto conjunto MISSíOPRESS