Primeiros passos, primeiras impressões de jovens missionários numa longa viagem através da floresta amazónica.
Primeiros passos, primeiras impressões de jovens missionários numa longa viagem através da floresta amazónica. Enquanto o silêncio toma conta do convés, vou recordando como cheguei aqui. De África, passou um ano, a Missão volta e desta vez, para a amazónia. O desconhecido toma conta de mim a par com outras coisas que me ajudam a seguir adiante: os companheiros de missão, o espírito salesiano que nos vai acolher, o nome de aveiro e da sua Igreja que actua no meio dos mais pobres.
Chegámos ao Brasil via S. Paulo. Voo longo e tranquilo. De lá apanhamos ligação para Manaus, a cidade capital da selva – a amazónia. Chegámos à meia-noite local. a trovoada era omnipresente, via-se a toda a hora no céu, mas apenas lá para cima, como que num espectáculo de fogo de artifício silencioso. Durante uma semana ficámos lá, conhecemos o meio. Depois seguimos viagem. Destino Belém, no Estado do Pará, o mais português do Brasil. Para chegar lá, teríamos de apanhar um barco, daquele tipo Vapor. O nosso era-o mesmo e tinha sido convertido, descobri a bordo mais tarde, em 1950, o Santarém, cruzador da amazónia já era um navio velho.
Teríamos de atravessar o Rio amazonas, de uma ponta à outra. Percorrer 925 milhas que separavam as duas cidades, pelo meio atravessar a selva, ver, perceber e aprender algumas coisas, misturarmo-nos com as pessoas, ser delas, com elas. Ser missionário também é isto, estar com, viver com, partilhar. Ter com-paixão por, no sentido lato da palavra: ter paixão por Enquanto escrevo estas linhas, enquanto navego num qualquer barco cruzando o imenso Rio amazonas, é nisto que penso e é nisto que a caneta vai discorrendo.
Estou deitado numa rede, no convés de um barco: O Santarém. Vamos para Oeste, é noite. O Cruzeiro do Sul acompanha-nos e orienta-nos no meio de um rio que mais parece o Mar.
Sou uma rede no meio de 165 (na realidade são mais porque a lotação foi ultrapassada) do 2º convés. Por baixo de mim, um outro convés igual mas, sem ar condicionado; por cima, os camarotes de 1a. a lotação ultrapassada foi fiscalizada pela polícia federal. Nada que não se consiga resolver com diálogo anuncia-nos o microfone que o barco foi interceptado com gente a mais, mas que entretanto foi liberado. Se não saiu ninguém, como diaxo foi liberado o barco pergunto-me eu adivinhando a reposta cúmplice entre armador e a fiscalização.
Nos barcos do amazonas, as pessoas dormem em salões amplos, arejados. Os convés têm barras de ferro atravessadas junto ao tecto. aí os passageiros montam a sua rede (chichorro como se diz nos vizinhos latino-americanos) e ficam a dormir, a descansar, a fazer sala, enfim, tudo o que se possa fazer numa viagem que vai durar cerca de cinco dias.
Neste momento, sou uma rede no meio de centenas de redes, estou deitado, sinto o calor humano próximo das pessoas que se amontoam. Eu sou uma delas, no meio de um barco que navega como tantos no meio de um rio enorme, o maior do Mundo, envolvido por uma floresta imensa, a mais inóspita que há. – Eis-me na amazónia, a terra dos sonhos cumpridos.
Sou uma rede no meio de tantas num convés de um barco entre tantos que navegam o rio maior e mais comprido, o rio que leva um quinto da água doce do planeta. À nossa volta, água portanto, água e mais água. O Solimões barrento e o Rio Negro já se misturaram numa candura de amor! São Um! O castanho e o negro misturam-se depois de 18kms de namoro e formam o emaranhado de água que é o amazonas.
Enquanto me instalo na minha insignificância, na minha minúscula pequenez deste quadro, no micro-ponto que somos na criação, sorrio porque estou em harmonia. a amazónia é enorme e absorve-me completamente.
Somos pequenos, somos um ponto. Somos da natureza e fazemos parte dela, tanto quanto uma gota de água, uma folha de uma árvore no meio de milhões nesta floresta. Não estamos acima de nada, não estamos abaixo de nada. Na criação não há classes. Todos ocupam o seu lugar, diferente, mas sempre igual.

Como não acreditar em Deus neste lugar?
Nesta insignificância encontro-me com Deus. Sinto-me parte d’Ele e lembro-me que era isto que as pessoas deviam sentir sempre que vão comungar na missa. Este descontrolo, este estar, este ser sem dominar, esta existência, ao sabor da vontade dos elementos, da vontade de Deus o saber que não tenho poder ou força alguma e o saber que não tenho de ter, não preciso de ter, porque eu sou eu, tu és tu, a água é a água, o céu o céu, a seringueira a seringueira, a barata é a barata. Tudo é nada e juntos somos comunhão, eu, os meus companheiros de viagem que aturam a minha ausência, enquanto rabisco linhas, tudo, todos, somos o mesmo, somos a criação, a vontade Divina do amor infinito celebrado a cada manhã amazónica em que o sol, ainda antes de se ver, se reflecte na omnipresente água. Em que a neblina desce dos picos, e dá o beijo doce de bom dia a tudo quanto existe e tem lugar neste intervalo de espaço e de tempo.
Como não acreditar em Deus neste lugar? Como não acreditar n’Ele olhando à minha volta, para as pessoas, para a amazónia, para o gigante de água doce? Como não acreditar n’Ele tornando presente os que me amam, que estão aqui, ao meu lado sentados e dentro de mim no meu pensamento Como conceber que Deus possa não existir quando me dá tudo isto, todos estes e outro tanto mais que não dá sequer para descrever em linhas de escrita… São coisas que nos envolvem, que nos tocam, estão por dentro, por fora São indizíveis.
Esta é a frustração de quem escreve, fala ou fotografa. Estas são as mãos atadas de quem tenta transmitir o nada e o tudo que vive. Esta é a doce solidão de quem não pode, porque não consegue repassar a mensagem.

Tanta desigualdade e pobreza, tão perto do paraíso
Recordo Manaus, já deixámos para trás a cidade adolescente que deu um pulo de crescimento quando a fizeram zona franca.como qualquer adolescente, cresceu, pulou, mas está cheia de borbulhas: a pobreza, o casario desordenado, feio e invadido, ocupado sem regras, sem ordem. Pergunto como é possível tal ilhota no meio da ordem, progresso e harmonia que é a amazónia.
Quando chegamos ao aeroporto, recolhemos a bagagem enquanto respirávamos água, mais do que ar. Passámos um corredor, um balcão vazio e estamos na rua. Estamos no Brasil. O tempo perdido inutilmente a preencher os papéis de entrada de estrangeiros podia ter sido aproveitado para continuar a não fazer nada, a dormir ou a ver filmes dobrados em português de sotaque carioca. Meia-noite locais, balcão vazioera a alfândega. Não se vê a Polícia Federal. Nada a fazer e entramos ilegais no Brasil. Para provar, nem sequer um carimbo no passaporte.
assim, daqui a muitos anos, talvez eu pense que isto foi um sonho lindo, cumprido ou por cumprir. E então aí, eu possa voltar de novo à amazónia e me encontre, de novo, com Deus, comigo e com pessoas: indígenas, caboclos, missionários, professores.
O povo daqui é pobre. Vive com pouco, carregando na vida uma certa consciência do desequilíbrio. O Brasil atesta bem os mais ricos entre os ricos e os mais pobres entre os pobres do mundo. O que me aflige no que vi é que estes pobres aqui não são refugiados, não sofreram guerras, não são degenerados, drogados ou malandros ,nem são de raças inferiores se as houvesse ou diferentes sequer. São pessoas normais, de família constituída. São pessoas que trabalham todos os dias e ganham misérias que não dão para ter os filhos na escola sequer. Estas pessoas não têm nome, são ninguém. Não contam para estatísticas, porque para o mundo eles são remediados até têm emprego!!! Mas as condições, a sub-humanidade que se concilia sempre com uma grande dignidade e esperança, na comunhão, na solidariedade, na libertação de tudo o que é mal e oprime esta comunhão com todos.
Muitos vieram da selva para Manaus, zona Franca, à procura de trabalho nas fábricas que aproveitam o paraíso de impostos. Mas não têm formação adequada, não estão formatados. Os impostores, os que se aproveitam da tal situação livre de impostos, passo a redundância, não oferecem grandes condições e assim cresce e se ocupa uma cidade, em que a expansão se dá pela pior hipótese. a cintura de pobreza aumenta sempre e é assim que a cidade tem caminhado nos últimos quinze anos. Que fazer? apesar do silêncio circundante, apesar da música das águas a cruzar a quilha do navio, por dentro de mim, há muito barulho, uma certa angústia em aceitar que tão perto do paraíso possa haver tanta desigualdade e pobreza.
Levanto a cabeça. Para lá do convés a água corre mais encrespada. O sol sobe lá para cima e lembra-me os Yanomamis: Hoje é hoje e só hoje. Olho para a barriga e lembro-me do mata-bicho, café da manhã pequeno-almoço. Está na hora, que sorte tenho de poder comer algo mais que farinha e peixe. Descemos para o interior d’O Santarém, chamado assim em homenagem à vila onde chegaremos ao meio-dia, com o mesmo nome da cidade Portuguesa. Tão iguais, tão diferentes

Pedro Neto, com Paulo Fontes e ana Laura Guedes (voluntários em missão no Brasil), Barco N-M / Santarém, algures no Rio amazonas